Envelhecer é uma novidade. Administradores públicos e profissionais de diversas áreas ainda estão tentando entender e se adaptar ao fenômeno recente de uma população que vive cada vez mais. As mudanças são impactantes dentro de casa: em famílias cada vez menores, em que as mulheres – antes as cuidadoras naturais – também passaram a trabalhar, há menos pessoas disponíveis para fazer companhia a idosos mais e mais longevos. Referência, no Brasil e no Exterior, em envelhecimento e longevidade, o médico carioca Alexandre Kalache se surpreende com ele próprio:
– Se você me dissesse, há 50 anos, que eu faria 70 anos e teria minha mãe viva com 98 anos, eu diria que era ficção científica.
Graduado no Rio, Kalache partiu para um mestrado na Inglaterra em 1975. Lá, teve um estalo: os brasileiros e o restante do mundo, a exemplo do que observava entre os ingleses, também passariam a envelhecer. Inusitada, a carreira foi construída com esse foco, provocando estranhamento. "Envelhecimento? Pirou?", questionavam-no. Durante os 34 anos em que esteve longe do país natal, Kalache se tornou doutor em Saúde Pública pela Universidade de Oxford e trabalhou por 14 anos como diretor do Programa Global de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS). Hoje morando no Rio, ele é presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil e copresidente da Aliança Global, que reúne centros de 17 países. Segue pelo mundo, super-requisitado para conferências e consultorias. O gerontólogo fez proposições inovadoras, como a ideologia do envelhecimento ativo, segundo a qual viver bem pressupõe ter acesso a saúde, conhecimento, capital social (pessoas com quem contar) e recursos financeiros. Para ele, é fundamental sempre pensar no futuro.
– Quando a gente vivia até os 50 ou 60 anos, num passado recente, a vida era uma corrida de cem metros. Hoje a vida é uma maratona – compara.
Leia mais:
>>> "Devemos cultivar a velhice que queremos", diz autora de livro sobre envelhecimento"
>>> Como mudar hábitos e ser mais saudável depois dos 40 anos
O Brasil envelheceu rápido demais, fenômeno que o senhor chama de revolução da longevidade, e envelheceu antes de enriquecer. Quais as consequências disso?
É um grande desafio, agravado agora por uma crise gigantesca. Não temos modelo para ver o que outros países fizeram em circunstâncias similares. A essa velocidade, vamos dobrar a proporção de idosos nos próximos 17, 18 anos: de 12,5% para 25%. É muito rápido. Já seria muito rápido para um país rico e estruturado. E ainda temos um legado complicado, uma população que está envelhecendo com problemas de saúde crônicos que pesam, que poderiam ter sido evitados. O Canadá hoje tem o dobro da proporção de idosos do Brasil: 25%. Em 2050, segundo a ONU, o Brasil terá 31% de idosos, e o Canadá, 30%. Mas o Canadá tem a casa em ordem, um excelente sistema de saúde, um ensino público fantástico, estradas, infraestrutura. Nós ainda estamos tentando resolver esses problemas. E os brasileiros que estão envelhecendo tiveram precariedades ao longo da vida. O canadense está envelhecendo com uma saúde que sempre foi boa, com acesso aos serviços. Hoje, no Brasil, um terço dos idosos são analfabetos. Não é só ser um país com graves deficiências de desenvolvimento socioeconômico, é ter uma população que sofre em decorrência disso.
O senhor não gosta de definir cronologicamente a velhice. Como conceituá-la? Quem é velho?
Você precisa de uma definição porque precisa planejar serviços. A coisa mais pragmática e operacional é a idade. Mas o que quer dizer ter 60 ou 70 se você está com boas condições de saúde, capacidade funcional, independência? Tenho 70 anos, continuo contribuindo com a sociedade, você me buscou, está interessada em ouvir a minha opinião. Por quê? Estou atualizado, ativo, continuo trabalhando pelo mundo afora. Qual é o estereótipo dos 70 anos? Será que é o do meu avô, que morreu mais jovem do que sou hoje, arrastando chinelo, de pijama, para ir ler o jornal na varanda? Não. Quando falamos somente na idade cronológica, inevitavelmente caímos em estereótipos, e temos que mudar isso, mudar a construção social do que é ser uma pessoa idosa. Hoje, mundialmente, há a emergência da geração dos baby boomers. Temos força porque somos numerosos, nascidos depois da guerra, com um nível de saúde mais alto do que qualquer geração anterior. Somos os primeiros privilegiados pela tecnologia médica. Até a II Guerra, não existia antibiótico, marca-passo, eram poucas as vacinas. Essa geração está envelhecendo com mais saúde, mais bem informada, porque a escolaridade aumentou, e com mais dinheiro no bolso. Participamos do movimento de liberação sexual, das lutas contra o apartheid, das revoluções simbolizadas pelos Beatles, pela Tropicália, a luta contra a ditadura. Tudo isso está escrito no meu DNA, então não vai ser agora que vou me conformar, botar o chinelo, o pijama e ir para a varanda ler jornal.
O senhor difunde o termo "gerontolescência".
Daqui a 15, 20 anos vamos pegar o dicionário e ler o que é gerontolescência da mesma forma que lemos hoje o que é adolescência. A adolescência dura cinco ou seis anos, mas a gerontolescência será um período muito mais longo, de 25, 30 anos, iniciado a partir dos 55, 60 anos. Imagine esse tempo todo para experimentar, se rebelar, virar a mesa. Você já não quer as coisas que queria antes. Estou liberado, não tenho filhos pequenos (é pai de Pedro, 42 anos, e Julia, 37), não tenho que pagar universidade, não estou preocupado em fazer carreira. Chega um momento de liberação que você quer pôr essa energia para fora e continuar contribuindo para a sociedade. Isso eu chamo ser gerontolescente. A definição etária cronológica é muito pobre para esse momento de criar uma nova construção social, uma nova forma de envelhecer.
Muitos não gostam da expressão "melhor idade". O que o senhor acha?
Está totalmente defasada. É um conceito cheio de ranço, de discriminação. A melhor idade é aquela em que você vive bem, satisfeito consigo mesmo. Pode ser aos 20, aos 40, aos 60 e se prolongar. Quando estou na fila para o check-in e ouço "passageiros da melhor idade", dá vontade de dar uma bengalada (risos). É um eufemismo e está deixando de ser usado. Não precisa me paternalizar, tampouco me infantilizar. Só porque fiquei mais velho tem de chamar de melhor idade?
Outras entrevistas sobre saúde da série Com a palavra:
>>> Iván Izquierdo: "A memória do medo nos mantém vivos"
>>> Melania Amorim: "Há um abuso de cesáreas sob pretextos fúteis"
O brasileiro é preconceituoso com a velhice?
Muito. Temos um compromisso com a juventude. O belo é o jovem, a pele lisa, as formas perfeitas, a malhação. Não é à toa que temos as taxas mais altas de cirurgia plástica no mundo. Todas as sociedades, de uma forma ou de outra, têm um ranço preconceituoso. A longevidade, do ponto de vista histórico, é algo muito recente, mesmo nos países mais desenvolvidos, que primeiro envelheceram. A expectativa de vida mais alta em 1900 era na Alemanha, na Austrália, e não passava de 50 anos. Ainda estamos nos adaptando. Não é à toa que o símbolo universal do envelhecimento ainda é uma figura curvada com uma bengala na mão. Já fiz isso com plateias de milhares em congressos internacionais: pego as pessoas de surpresa, peço para fecharem os olhos e pensarem numa pessoa idosa que conheçam. "Quantas dessas pessoas idosas que vocês imaginaram têm uma bengala na mão?", pergunto. É uma minoria. Não é que tenha algo de errado em ter uma bengala na mão, mas, coletivamente, quando você faz isso num auditório com milhares, você percebe que o símbolo universal é preconceituoso: a pessoa tem que ser frágil, curvada, se arrastando com uma bengala na mão. Temos que combater esses preconceitos, que levam a expressões tipo "vamos ser bonzinhos com os velhinhos". Não quero que ninguém seja bonzinho comigo. Quero que me respeitem, e esse respeito não está associado à idade. Não quero que ninguém ache também que, por eu ser idoso, tenho que ser especialmente sábio, inteligente, interessante. A maioria das pessoas não é especialmente bonita, interessante, sábia. Por que essas pessoas comuns, à medida que envelhecem, para serem bem aceitas, têm que ser superinteligentes, charmosas, bonitas? Temos que respeitar o indivíduo como ele é.
Muitos querem viver muito, mas com boa saúde física e mental. Não é um tanto ilusório esse desejo de superlongevidade saudável?
As pessoas não costumam pensar "como vou estar daqui a 30, 60 anos?". Gosto muito de falar com jovens, fazer com que pensem que eles têm um amanhã que vai depender do que fazem hoje. Quando peço às pessoas para que pensem na noite do seu aniversário de 85 anos, a imensa maioria imagina que vai estar bem, dentro de casa, celebrando com os netos, a família, os amigos. De vez em quando alguém se imagina fazendo uma viagem que nunca fez, escrevendo um livro. Todos estão ativos, lúcidos, com capital social, netos. Para isso, tem que investir. Tem gente que vai sofrer doenças crônicas, degenerativas, independentemente do seu comportamento. Aí, sinto muito, é uma condição hereditária, congênita. Mas a imensa maioria dos problemas pode ser prevenida com hábitos saudáveis, investindo em prevenção das doenças crônicas. E tem que caprichar para manter o capital social. Adulto ranzinza é muito chato, mas velho ranzinza ninguém tolera. Então, seja mais doce. Dou o exemplo do meu sogro, que faleceu há poucos anos, já muito velhinho, 104 anos, mas com senso de humor. Uma enfermeira um dia perguntou: "Quantos filhos o senhor tem?". A resposta dele: "Por enquanto, só três". Quando ele ia ao hospital, a faxineira, o recepcionista, o auxiliar de enfermagem, todo mundo ia lá conversar com ele, ouvir uma piada. O ranzinza acaba realmente só. À medida que você vai envelhecendo, vai ficando sobrevivente da sua geração. Minha mãe, antes do Alzheimer, dizia: "Ai, meu Deus. Olho para o meu caderno de endereços e tem cada vez mais gente riscada". Você vai ficando isolado. Se não tiver um diálogo com a geração que precede... Quando ela tinha 75 anos, dizia: "Agora só faço amigo que seja pelo menos 20 anos mais jovem, senão vou acabar só". Eu estou fazendo isso (risos).
As pessoas precisam de uma razão para viver, e é comum os idosos alegarem que nada mais os impulsiona. Este é um dos desafios da velhice?
É. Não só porque você tem perdas do ponto de vista pessoal, de saúde, financeiro, de capital social, porque as pessoas foram morrendo. É sobretudo existencial, você não tem mais projetos, um plano para o futuro, algo que te motive a sair da cama com alegria, que faça você se sentir útil. O mais importante é que as pessoas vivam pensando nesse futuro. As pessoas não percebem isso e acabam empurrando. É mais característico do homem. Quando o homem se aposenta, é um desastre. Ele investiu tudo no universo do trabalho, e de repente ele trabalhou até as cinco hoje e amanhã às nove ele está aposentado. Veja a perversidade de como foi traduzida a palavra retirement ("aposentadoria") para o português: te botam num aposento, você fica lá no fundo da casa. Quando inventaram a palavra, as pessoas moravam em casas grandes, e tinha um aposento nos fundos onde ficava o velho. Se você não brigar para estar na frente da casa, na frente da sociedade, é onde você vai acabar: nos aposentos da sociedade, escondido. Como há uma perda também financeira, você não vai ter o dinheiro para fazer aquelas viagens que sonhou, os prazeres que achava que teria depois de aposentado. Vai ter montes de tempo e não vai saber como preenchê-los. Vá fazer um trabalho voluntário, um mestrado, aprender mais, mexer no computador, para continuar motivado. Com essa longevidade, não é a velhice que se prolonga, é a vida que é mais longa. Quando a gente vivia até os 60 anos, num passado recente, a vida era uma corrida de cem metros. Você vinha com todo o gás para chegar ao fim. Hoje a vida é uma maratona. Você precisa ter estratégias, treino, objetivos. Não há interesse nenhum de chegar ao final dessa maratona aos trapos, sem qualidade. O resto a gente, de alguma forma, compensa. Perdas são inevitáveis. Quanto mais tempo você vive, mais perdas vai acumular. Mas se você mantiver a motivação, vai longe.
Mulheres encaram melhor o envelhecimento?
A mulher fala mais de si. O homem é mais fechado. Esse compartilhar dos problemas faz com que, muitas vezes, os problemas sejam minorados. Tem a imagem clássica das mulheres na beira do rio, lavando a roupa, com as crianças ao lado. Está todo mundo ali, participando de uma coisa comum. O homem vai para o trabalho, solitário, e não se prepara para o envelhecimento, para a pós-aposentadoria. Não é à toa que, para os homens, mas não para as mulheres, há um aumento muito grande da mortalidade nos dois primeiros anos após a aposentadoria. A mulher tem um capital comunitário, está mais envolvida com a vida dos filhos, dos netos, então o trabalho não é tão essencial como é para a maioria dos homens. Tem outra coisa importante: na nossa cultura, o cuidado ainda é feminino. Não só o cuidado aos outros, mas também o autocuidado. Quando eu era garotinho, não me deram uma boneca para cuidar, me deram uma bola para chutar e uma pistola para atirar. Quando eu caía e machucava o joelho, vinha um adulto e dizia: "Não foi nada. Passa uma água e volta a brincar". Se é uma menina, alguém bota no colo, dá um beijinho. No que se vai traduzir isso, 60 anos depois? O homem não pode sentir dor, machucou o joelho mas continuou a brincar, tem que ser macho. Ser macho aos 60 ou 70 anos significa que você está com uma dor mas não fala para ninguém. Se você tiver a sorte de ser casado e ter uma mulher do lado: "Não, senhor, já marquei o médico, vou te levar de arrasto, está há dois meses com essa tossezinha e vai ter que ver o que é, sim". A mulher tem essa intimidade com o serviço médico, faz pré-natal, menstrua, tem intimidade maior com seu próprio corpo, cuida da criança.
Teme-se mais a velhice ou a morte?
As pessoas estão com menos medo da morte, mas com muito medo do sofrimento que pode precedê-la. Em parte porque os nossos serviços de saúde não estão preparados para a morte. Médicos e enfermeiros são treinados hoje no Brasil como eu fui treinado 50 anos atrás. Aprendi anatomia em um atlas onde figurava um homem jovem, com todos os seus músculos, veias e artérias intactos, no apogeu dos seus 25 anos. Gosto muito de falar para os estudantes de medicina, olhando no olho: ou vocês vão fazer um esforço para aprender sobre envelhecimento, ou vocês vão errar muito. Vão matar pacientes na santa ignorância, não vão estar nem desconfiando que estão matando aquele paciente do qual tanto gostam.
Sua mãe tem 98 anos, o senhor está com 70. Gostaria de viver até que idade?
Acho que vou chegar facilmente aos 90. Meu pai faleceu com 90. Até o ano anterior a sua morte, ele estava bem. Procuro fazer o que posso para investir nesse futuro e para que eu chegue bem a essa idade.
O senhor está muito bem. Além da rotina produtiva, ao que mais deve essa boa forma?
Escolhi bem os meus pais (risos). Ter pais longevos e saudáveis até uma idade respeitável, isso ajuda, mas só 25%. O resto, 75%, é aquilo que você faz, como você vive, aquilo que você come. O brasileiro está ficando obeso, a epidemia de doenças cardiovasculares, obesidade, problemas osteomusculares, tudo isso é decorrência de uma dieta muito inadequada e de vidas muito sedentárias. O brasileiro é preguiçoso. Vai comprar pão a um quarteirão da casa e pega o carro. Não é só fazer exercício físico como se fosse treinar para ser um atleta, mas no dia a dia. Estou falando com você andando de um lado a outro do apartamento, me mexendo. É natural, já está incorporado. Sou muito privilegiado, moro de frente para a Avenida Atlântica, no edifício onde nasci e me criei. Meu sonho era um dia voltar a morar aqui. Consegui, deu certo, isso é qualidade de vida. Gosto muito de cozinhar, o que também me ajuda. Quando estou em casa, como supersaudável, compensa pelos pecadilhos das viagens. Mantenho meu computador em uma bancada, trabalho quase sempre de pé, está provado que faz bem para a saúde. Andar, procurar andar mais rápido, mover todas as suas articulações, isso tudo é muito importante. Fazer uma caminhada, uma higiene mental... O (jornalista e escritor) Zuenir Ventura, um cara maravilhoso, que está com 85 anos, diz que as melhores ideias que teve na vida foi caminhando em Ipanema. E ele continua fazendo isso todo dia.
Para quem trabalha escrevendo, às vezes o pior lugar para se inspirar é na frente do computador, olhando para uma tela em branco.
É. Te obriga, né? Fica aquela escravidão de ter que produzir alguma coisa criativa. Se você chegar para o seu chefe e falar "olha, vou tirar duas horas porque quero dar uma caminhada para limpar o cérebro", ele vai te olhar e dizer "que isso?!" (risos).
PROJETO FRUSTRADO
Alexandre Kalache foi chamado pelo governo Yeda Crusius (2007 – 2011) para implementar o projeto RS Amigo do Idoso, que previa ações nas áreas de transporte, moradia, participação cívica, acesso a serviços, trabalho e educação. Grupos responsáveis por cada um dos setores chegaram a se reunir em uma sessão plenária para apresentar suas principais conclusões e recomendações, e os resultados foram encaminhados à governadora. O médico viajou por cerca de 30 cidades do Estado, mas a iniciativa acabou não dando em nada. "Uma grande frustração", ele lamenta.