Sábato Magaldi pode ser considerado aquilo que se chama rigorosamente um mestre do teatro. Mestre, no caso, pela sua condição de professor e acadêmico. Mas, antes mesmo desta condição ou junto a ela, pela longa trajetória como uma das referências centrais da cena brasileira. Referência para mais de uma geração de artistas e críticos. A observação em sintonia fina desta vocação pedagógica tem a ver menos com a mera transferência de um saber acumulado e mais com o que dizia Décio de Almeida Prado a respeito daquela geração que a partir dos anos 1940 ajudara a forjar a cena moderna: trata-se, antes de tudo, de uma disposição formativa de mão dupla, de pensadores que formavam ao tempo em que eles mesmos eram formados pelo teatro emergente.
Talvez esse gosto pela experiência formativa justifique as tantas frentes em que o crítico produziu: a crítica propriamente dita, a pedagogia, a gestão pública. Sábato construiu a seu modo a figura do intelectual militante, seja no trânsito entre a produção acadêmica e a variedade da cobertura jornalística (escreveu para O Estado de S. Paulo por mais de 10 anos), seja ao assumir cargos importantes no Estado. Foi o primeiro Secretário Municipal de Cultura de São Paulo, a partir de 1975, e em sua passagem criou-se, entre outras coisas, o antigo Departamento de Informação e Documentação Artística (Idart) que tinha como missão registrar e preservar, sob olhar contemporâneo, as manifestações da arte brasileira a partir da cidade de São Paulo. Naquele momento, ele contou com a colaboração de artistas e pensadores de peso, postos na função de pesquisadores, como o poeta Décio Pignatari.
Uma visão superada, mas ainda relevante
Na historiografia e ensaística do teatro, Sábato promoveu tanto a visada ampla, como em Panorama do teatro brasileiro, quanto o estudo de caso, como em Nelson Rodrigues: dramaturgia e encenações e Um palco brasileiro – O Arena de São Paulo. São estudos ainda hoje fundamentais para a compreensão do modernismo não só quanto ao registro como também quanto a certa visão particular do que marcava a nossa modernidade. Em todas estas obras, assim como na cobertura colada ao calor da hora nas temporadas, sobressai um projeto: o de uma cena que tem entre outras características a valorização do texto como elemento central do fenômeno teatral, o respeito pela ideia de gênero como paradigma tanto da criação quanto da crítica, a renovação do repertório dramatúrgico com a difusão dos clássicos e dos modernos, a profissionalização do ofício do ator e do encenador e o fomento ao autor nacional.
Por um lado, o projeto foi sendo superado ou adaptado aos novos modos de criação e produção enquanto o país mudava e enquanto os próprios paradigmas estéticos se diluíam ou se refaziam. Por exemplo, o encenador do momento inaugural foi sendo paulatinamente substituído pelas formas da criação coletiva, o texto como elemento fundamental da cena foi dando lugar ao descentramento e à emergência das dramaturgias espetaculares, não textuais. Os próprios métodos de criação e contato com as plateias diversificaram-se a ponto de inventar uma nova sociologia para o teatro.
Nada disso, entretanto, foi capaz de desmerecer a geração de Sábato e a sua inatacável presença de época. A importância da sua produtividade, que se faz notar vivamente hoje, se relaciona com uma abertura até então pouco observada, ainda que hoje possa parecer corriqueira: a percepção do teatro como um ofício de possibilidades amplas e de exigências estéticas rigorosas. Para Sábato, assim como para aquela geração, esta abertura exigente tem a ver tanto com as tarefas da criação artística quanto com as tarefas da crítica. De todas as lições, esta talvez siga sendo a mais atual, ou a que continua frutificando Brasil afora, onde exista um grupo de estudantes ou de artistas veteranos experimentando formas e onde exista um crítico tentando descobrir maneiras de relatar, de valorar, de desvelar a cena aliando alguma ciência com um tanto de paixão pelo teatro.
* Jornalista, crítico e pesquisador do teatro
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O legado do crítico e teatrólogo Sábato Magaldi
Sábato se dedicou à história do teatro brasileiro e, em particular, à dramaturgia de Nelson Rodrigues
Kil Abreu
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