O jornalista Vitor Netto colabora com o colunista Rodrigo Lopes, titular deste espaço.
Aumentou para o cinco o número de mortos na tragédia ocorrida em Novo Hamburgo. Em entrevista à coluna, o pesquisador Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, reflete sobre o caso e sobre a posse e porte de armas no país.
Uchôa é doutorando em Democracia do Século XXI pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal. Possui mestrado em Sociologia Política pela UENF e especializações em Criminalidade Organizada pela Academia Nacional de Polícia, Criminologia e Direito Penal pela PUCRS.
Como o senhor analisa o caso de Novo Hamburgo? Como uma pessoa que já teve quatro internações psiquiátricas tinha tantas armas dentro de casa?
Primeiro, provavelmente não era porte (de arma). Provavelmente, ele tinha só posse. Quer dizer, tinha anuência para ter as armas em casa e usá-las em na residência ou no clube de tiro. Não dá para saber se é só isso mesmo. Ou se ele tinha um porte também. Mas na situação em tese, não importa. O é estranho é que, para ter posse, é preciso passar por uma avaliação psicológica. Como é que uma avaliação psicológica não apontou isso (os transtornos mentais)? É algo que temos de perguntar. Se é uma pessoa que tem um problema psiquiátrico e isso não está aparecendo em um exame psicológico, temos de repensar como esse exame é feito. Qual é a eficácia desse exame. Agora, temos uma outra hipótese: teria desenvolvido a esquizofrenia após o laudo? Durante o governo Bolsonaro a pessoa só precisava passar por um laudo psicológico a cada 10 anos, o que possibilitava que ocorressem coisas como essa. O governo Lula voltou a exigir um exame psicológico a cada três anos. São questões que mostram a importância de se ter prazos reduzidos para acompanhamento psicológico, para poder constatar se elas continuam tendo capacidade mental para possuírem armas de fogo. O governo atual acerta ao fazer essa mudança de redução de 10 para três anos. Mas, ao mesmo tempo, abre um ponto de interrogação: será que os exames psicológicos que estão sendo realizados São adequados para a finalidade? Não tenho essa capacidade técnica para poder atestar isso, mas é algo que ligou um alerta.
Dá para observar onde que ocorreu a falha? Onde estava a fiscalização?
Nesse caso, é muito difícil para o órgão fiscalizador. Por exemplo, se a pessoa apresenta um laudo de um psicólogo, dizendo que tem capacidade mental para possuir uma arma de fogo, é muito difícil para o Exército contestar isso (o documento). Tanto a Polícia Federal quanto os militares do Exército não têm essa capacitação técnica para contestar um laudo de um psicólogo credenciado para esse tipo de exame. Você parta do princípio que aquele é um laudo técnico. No caso da esquizofrenia ter sido desenvolvida após a compra da arma de fogo, volta-se para o caso da legislação em vigor à época. Com um prazo muito longo uma avaliação psicológica, não dá para afirmar que foi um problema de fiscalização. Acho que a temos de entender como é que uma pessoa conseguiu um laudo psicológico tendo problemas psiquiátricos.
Qual é a diferença do porte e posse?
A posse você pode ter arma de fogo dentro da sua casa ou local de trabalho. Se for uma posse para defesa pessoal, que é permitida pela Polícia Federal, essa arma tem de permanecer em casa ou no local de trabalho. Você não pode circular com essa arma em lugar nenhum. Se você quiser circular, precisa pedir o porte. É a permissão para que você circule em áreas públicas. O porte é uma evolução da posse. Agora as armas desse caso, que ele era um CAC (caçadores, atiradores e colecionadores), não emite o porte. Durante o governo Bolsonaro, os CACs podiam circular armados pelas ruas. Ele podia ir armado durante esses trajetos entre o clube de tiro e a casa. Hoje, isso não é permitido. Então a arma do CAC só pode ficar em local de guarda. Ela só pode ser retirada para deslocamento, não pronta para uso. Deve ir dentro de um estojo, ou de uma caixa, na mala do carro, por exemplo. E só pode ser carregada no clube de tiro, porque é uma arma para a prática do esporte, não para defesa pessoal. É importante lembrar que houve um crescimento no número de CACs. Pulamos de 60 mil em 2017 para quase 800 mil em 2022. O número de armas em mãos de CACs passa de um 1,5 milhão. Foram pessoas que adquiriram armas para praticar esporte? É sobre isso que temos de pensar. Eu acho que não. Acho que é um percentual mínimo que realmente quis praticar o esporte. A grande maioria é uma galera que foi em busca das armas e não do esporte. Pessoas que querem usufruir de algum poder que emana dessas armas. E aí vamos debater sobre masculinidade e outros pontos.
O que olhar daqui para frente?
O governo Lula fez mudanças importantes, principalmente nessa questão de caracterização: quem é o praticante do esporte e quem não é. Mas precisamos entender que entraram em circulação 1,5 milhão de armas. E precisamos entender que elas permanecem em circulação. Armas muitas vezes de calibres que se tornaram restritos novamente, como 9 milímetros, inclusive explosivos semiautomáticos. Precisamos entender o que a sociedade quer? Queremos que essas armas sigam nas mãos das pessoas? Queremos retirar uma parcela dessas armas de circulação? Queremos aumentar a fiscalização para ter um maior controle sobre essas armas? Precisamos ter um debate amplo para saber o que a sociedade quer, não dá para esperar uma nova tragédia.
A partir de 31 de dezembro a regulamentação da posse e porte vai passar do Exército para a PF. Como o você avalia a mudança?
Vejo isso com muita alegria, a princípio: o controle de armas de civis deveria estar sob instituições civis. Desde 2003, quando foi feito o Estatuto do Desarmamento. O papel dos militares no controle de armas civis era algo completamente fora do normal. Inclusive, não é algo comum sequer em países democráticos. Cabe parabenizar o governo federal, mas, ao mesmo tempo, o governo federal falha em não prover a estrutura física e de pessoal adequada para essa demanda que vai chegar para a PF. Estamos falando de uma demanda de atendimento para 800 mil CACs, 1,5 milhão de armas e fiscalização de clubes de tiro. Teremos uma estrutura inadequada para o momento atual, que vai ter o trabalho triplicado. Isso é uma temeridade, mas não só pela má qualidade do serviço, mas isso pode gerar um caos no atendimento, problemas na fiscalização. O que vão municiar aqueles que são contra os avanços da política de controle de armas do governo Lula ao não fazer os investimentos necessários. O governo pode estar colocando em xeque toda a sua política de controle de armas, porque vai permitir críticas.
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