"A hipocrisia é a homenagem do vício à virtude", dizia La Rochefoucauld. Bem, a hipocrisia certamente não figura entre os defeitos do novo presidente dos EUA, Donald Trump. Em contraste com muitos dos seus antecessores e vários líderes do mundo ocidental, Trump se destaca pela clareza e pela sinceridade. Para bem e para mal, ele desconhece o valor e a utilidade da hipocrisia.
A sua declaração, no discurso de posse, de que em seu governo o lema seria "America first" foi recebida com uivos de indignação em diversos países e mesmo dentro dos EUA. Ora, ora, em que Trump é diferente dos seus antecessores nesse particular? Para os americanos, o lema sempre foi "America first". E, por isso, aliás, chegaram aonde chegaram. A única diferença é que Trump proclama esse princípio em alto e bom som.
Outra declaração típica: "Os EUA estão outra vez preparados para liderar" (no primeiro discurso de Trump ao Congresso). Nada de novo. Todos os presidentes americanos, inclusive Obama, sempre repetiram esse mantra. Faz parte da psicologia básica dos líderes políticos americanos a necessidade, diria, compulsiva, de declarar liderança – quando, evidentemente, a liderança tem que ser reconhecida e aceita pelos candidatos a liderados, e não anunciada "urbi et orbi" pelo candidato a líder...
Mas, enfim, Trump tem toda a razão quando diz ao Congresso: "A minha tarefa não é representar o mundo. A minha tarefa é representar os Estados Unidos da América". Em todo o planeta, inclusive aí no Brasil, sempre existiu um grande número de iludidos que olhavam para o governo dos EUA como referência e fonte de orientação. A esses, Trump explica: "A América respeita o direito de todas as nações de definir o próprio caminho". Em outras palavras: cuidem dos seus próprios interesses; eu fui eleito para cuidar dos interesses dos Estados Unidos. No discurso de posse, ele foi ainda mais longe ao reconhecer que "é direito de todas as nações colocar os seus interesses em primeiro lugar".
Isso tudo é de uma obviedade constrangedora, eu sei, mas o fato é que durante décadas fomos alimentados pela ideia de que, num mundo "globalizado", as nações estariam desaparecendo e que todos seríamos, de alguma forma, participantes de uma "sociedade mundial". Os Estados Unidos sempre foram grandes propagadores dessas ilusões. Posso imaginar a desorientação dos que acreditaram na hipocrisia anterior.
Não quero aqui discutir se a franqueza de Trump serve aos interesses dos EUA como grande potência. A hipocrisia tem as suas funções, afinal. Não é por acaso que o vício homenageia a virtude. Mas os americanos que cuidem dos seus interesses. O Brasil é que nos interessa, em primeiro lugar.
Aos brasileiros caberia, no meu entender, observar bem o que está acontecendo no resto do mundo. E, sem cair na xenofobia, na aversão ao estrangeiro e na hostilidade irracional para com outros países, reconstruir o sentimento de nação – sentimento que vem sendo profundamente abalado pela polarização cretina que tomou conta do nosso país nos anos recentes.
Desculpe, leitor, se resvalei para uma linguagem agressiva. É que mesmo estando aqui do outro lado do mundo, é difícil não se exasperar com o rumo que o Brasil vem tomando de uns tempos para cá.
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