Queridinho do FMI na América Latina por um lado e fiel seguidor do chavismo por outro, o presidente da Bolívia, Evo Morales, tenta se habilitar para emplacar quase duas décadas no poder.
Mais de 6 milhões de bolivianos decidirão no domingo se autorizam Evo a buscar seu quarto mandato, que concluiria em 2025, em um referendo abalado por denúncias de corrupção e pela morte de seis pessoas em um ataque contra uma prefeitura da oposição.
Até a semana passada, os partidários da reforma constitucional para permitir que Evo se candidate a um quarto mandato consecutivo estavam empatados. Mas as acusações que o afetam diretamente começam a mudar o panorama. De acordo com pesquisas recentes, os partidários do "Não" (47%) superam os dos "Sim" (27%). Problema sério para os planos de Evo...
Se o cenário for confirmado, será a primeira derrota direta de Evo nos 10 anos de mandato, um dos últimos representantes do chamado socialismo do século XXI. Anteriormente, seu partido havia perdido em 2015 lugares chave nas eleições municipais.
Primeiro indígena aymara a chegar à presidência, Evo também foi atingido pelo escândalo do suposto tráfico de influência em favor de sua ex-mulher, Gabriela Zapata, que, aos 28 anos, é uma alta executiva da empresa chinesa CAMC, com contratos com o Estado no valor de US$ 576 milhões.
A Controladoria e o Congresso investigam o tema.
O jornalista que denunciou o caso, Carlos Valverde, chefe de inteligência na década de 1990, foi "agente infiltrado da embaixada dos Estados Unidos", segundo o ministro da Presidência, Juan Ramón Quintana. Valverde negou a acusação. É a velha desculpa da conspiração...
Evo também pode ser prejudicado pelas consequências de um ataque na quarta-feira contra a prefeitura de El Alto, em poder da oposição, que deixou seis mortos pela inalação da fumaça após os incêndios, provocados supostamente por membros do governista Movimento Ao Socialismo (MAS).
Depois de admitir pela primeira vez que, se o "Não" vencer, o MAS (seu partido) terá outro candidato, Evo proclamou que acredita em uma vitória nas urnas.
– O povo vai decidir conscientemente, e vai faltar tempo para festejar – mencionou.
Em 2006, Evo tomou posse com 54% dos votos. Quatro anos mais tarde, em 2010, teve um esmagador índice de 64%. Já em 2015, obteve com 61% o terceiro mandato que concluirá em 2020, convertendo-se, já agora, no presidente que permaneceu por mais tempo no poder na Bolívia.
O ex-candidato presidencial Samuel Doria Medina, derrotado duas vezes por Evo, estimou que a opção "Não" "triunfará com pelo menos 10 pontos de vantagem", também em razão das denúncias de corrupção em um contexto indígena que atinge dezenas de dirigentes do MAS, entre eles uma ex-ministra detida preventivamente.
O governo suspeita de que o dano econômico pode chegar a pouco mais de US$ 2 milhões pela realização de obras-fantasma, razão pela qual as investigações prosseguem, embora a oposição estime que o prejuízo pode rondar os US$ 140 milhões. Por esse episódio, a ministra de Desenvolvimento Rural, Nemesia Achacollo, próxima ao presidente, renunciou.
Enfim, são dias tensos estes na Bolívia.
Enquanto a oposição concentrou sua artilharia na corrupção, Evo e o vice-presidente, Álvaro García Linera – acusado de não ter título acadêmico e de tramitar irregularmente seu registro de serviço militar –, intensificaram seu discurso sobre a bonança econômica vivida pelo país.
Apesar da queda dos preços das matérias primas, a Bolívia – que abastece de gás natural os mercados de Brasil e Argentina – prevê um crescimento de 5% no período de 2016 a 2020.
No entanto, conforme o professor universitário Marcelo Varnoux disse à agência de notícias France Presse, a propaganda e o discurso governista "não tiveram a força de convencer as pessoas, porque magnificaram a gestão de Morales com mentiras".
– Essa campanha está sendo muito sui generis, e é preciso ser prudente – avalia o cientista político Armando Ortuño, também em entrevista para a AFP.
Já o analista Carlos Cordero acredita que "o "Não" ganhará com vantagem de ao menos 10 pontos". De acordo com Cordero, contrário a Morales, "quando as gestões passam de dois períodos, tornam-se opacas. Ou seja, impedem a fiscalização, "e o controle social é porta aberta para a corrupção".
MAIS SOBRE EVO MORALES
Evo chegou ao poder em 2006, com o simbolismo de ser o primeiro presidente indígena da Bolívia e um discurso anticapitalista. Agora, apresenta suas conquistas para continuar no poder.
O governante aymara, nascido há 56 anos em Orinoca, uma localidade remota dos Andes bolivianos, representa um modelo de gestão que tem como objetivo declarado acabar com a exclusão dos camponeses e trabalhadores do exercício do poder.
Em 2006, ele nacionalizou os hidrocarbonetos, que estavam nas mãos de empresas estrangeiras, como a brasileira Petrobras e a espanhola Repsol, e iniciou um fluxo milionário de recursos para o fisco, que serviu para a criação de bônus sociais e o planejamento de investimentos para industrializar o país, centenário monoprodutor de matérias-primas.
No cenário internacional, Morales decidiu fortalecer as relações com países como Cuba, Venezuela e Irã e congelou ao máximo os vínculos com os Estados Unidos.
"Aquí não governam os gringos, aqui governam os índios", declarou esta semana, numa de suas várias aparições públicas para promover a reforma constitucional que permitiria sua candidatura nas eleições gerais de 2019, para um novo mandato de cinco anos (2020-2025).
Morales expulsou em 2008 o embaixador dos EUA e a agência antidrogas DEA. Em 2013, foi a vez do programa de ajuda do governo americano (USAID), ao mesmo tempo em que estreitava os laços com Havana e Caracas. Ainda assim, por sua gestão econômica, é o queridinho do FMI.
O presidente boliviano se alinhou ao bloco regional de esquerda Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), criada pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez, ao lado dos colegas Rafael Correa do Equador e Daniel Ortega de Nicarágua, com um discurso antiamericano. Sem formação universitária, também levou para os fóruns internacionais um discurso de defesa da terra e da folha de coca, a planta milenar que o catapultou como líder dos camponeses bolivianos.
Seu governo processou em 2013 o Chile no Tribunal Internacional de Haia para solucionar a falta de saída marítima do país, situação provocada pela guerra entre os dois países no fim do século 19.
O boliviano organizou em 2014 uma reunião de cúpula do grupo G77+China contra a pobreza. Também foi o anfitrião de eventos globais de organizações indígenas e sindicais de esquerda. Já bateu todos os recordes no país, como o fato de ser o presidente com maior tempo no poder, e pretende conquistar mais cinco anos, ao fim do atual e terceiro mandato em 2020.