O momento foi de tensão, e essa tensão deve se estender pelos próximos dias. Mas, também, foi um momento histórico.
Pondo fim a 17 anos de hegemonia chavista, a oposição assumiu nesta terça-feira o comando do parlamento numa Venezuela mergulhada em severa crise econômica e convulsão política, abrindo uma etapa de choque de poderes que complica ainda mais a governabilidade do país.
Com esmagadora maioria opositora de 112 deputados da Mesa da Unidade Democrática (MUD) contra 55 oficialistas, a nova legislatura, eleita em 6 de de dezembro, toma posse para um período de cinco anos.
O clima era de tensão, em meio a gritos e acusações mútuas dentro do parlamento unicameral, e com marchas de seguidores de ambos os lados do lado do lado de fora da Casa. Nas ruas e praças de Caracas, havia centenas de pessoas reunidas pacificamente. Também havia, porém, encapuzados em motocicletas.
O Palácio Legislativo foi cercado por um forte esquema de segurança.
O presidente Nicolás Maduro garantiu a instalação pacífica do que chamou de "parlamento burguês".
Eleito presidente da Assembleia Nacional Legislativa venezuelana, o político veterano Henry Ramos Allup assumiu um compromisso com a legalidade ao prestar juramento ao cargo.
- Juro cumprir bem e fielmente a Constituição e as leis da República e todos os deveres e obrigações inerentes ao cargo - afirmou Allup, um advogado de 72 anos e ferrenho crítico ao chavismo, no púlpito da Assembleia.
Allup disse confiar em que as forças armadas garantiriam a ordem.
- As forças armadas não servem para subverter a ordem constitucional, nem para desconhecer a institucionalidade democrática, muito menos para dar golpes de Estado - respondeu o ministro da Defesa, Vladimir Padrino.
Allup recebeu o apoio de 109 deputados da MUD. Os outros três legisladores se abstiveram de votar porque o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) deixou em suspenso sua eleição, ao aceitar, na quarta-feira, medida cautelar que suspendeu a proclamação de resultados no Estado do Amazonas por supostas irregularidades.
Antes do juramento, o presidente do parlamento em fim de mandato, Diosdado Cabello, alertou que qualquer ato aprovado com os votos dos dirigentes impugnados seria ilegal. Por precaução, eles se abstiveram.
- Qualquer coisa que se faça com a participação dessas pessoas começará com caráter nulo. Decisões tomadas sem que as pessoas estejam legitimamente autorizadas para tal fim carecem de qualquer validade, e a diretoria da Assembleia entraria em desacato a uma decisão do TSJ - adiantou ele, ameaçadoramente.
Aberta a sessão parlamentar, em um Congresso lotado de deputados chavistas e opositores, líderes da oposição, do governo, diplomatas e jornalistas, revisaram as credenciais dos novos legisladores. A comissão encarregada da transferência de poder, presidida por um legislador chavista - o mais velho da Casa -, aceitou apenas 109 nomes da oposição e 54 do chavismo, acatando a decisão judicial. Se os três não tomarem posse, a MUD perderá a maioria qualificada de dois terços (112 de 167 cadeiras) conquistada nas urnas. Ainda assim, mantém boa maioria.
- A governabilidade e a tranquilidade do país dependerão da maneira como o chavismo vai superar sua derrota e a oposição administrar sua maioria legislativa e divisões internas - comentou o analista Luis Vicente León, dono do instituto de pesquisas Datanálises, tido como o mais isento de todos.
León ainda atribuiu ao equilíbrio institucional a superação ou não da crise socioeconômica vivida pelo país.
Com as maiores reservas de petróleo do mundo, a Venezuela sofre com a queda dos preços da commodity - fonte do 96% de suas divisas -, um déficit fiscal de 20% do PIB, 200% de inflação, severa escassez de alimentos e uma contração econômica de 6% em 2015, segundo cálculos de institutos privados.
Esgotados das filas para comprar comida e da insegurança crescente no país, os venezuelanos estão na expectativa, alguns com esperança, e outros, pessimistas, diante da confrontação vista nas últimas semanas.
Para a oposição, inicia-se "a mudança". Para Maduro, é o início da luta de dois modelos: o "do povo, que quer preservar as conquistas sociais da revolução" e "o neoliberal da burguesia, que quer privatizar tudo".
Na véspera da mudança de legislatura, Maduro promulgou uma reforma para retirar do parlamento o poder de eleger o presidente do Banco Central. O presidente cogita apresentar, em breve, um "plano de emergência" para a reativação econômica e disse esperar que a maioria opositora não o "sabote".
Na que deve ser uma das primeiras batalhas no Congresso, a MUD planeja aprovar uma anistia para 75 políticos presos, entre eles o líder oposicionista Leopoldo López, condenado a quase 14 anos de prisão. López é acusado de ter estimulado a violência nos protestos de 2014. Maduro antecipou que vetará qualquer medida nesse sentido.
"Anistia já", lia-se em um cartaz de convidados da oposição presentes no parlamento, entre eles a mulher de López, Lilian Tintori, que se tornou uma espécie de porta-voz do político.
A MUD anunciou ainda que vai oferecer em até seis meses, se o governo resistir às reformas econômicas, uma via "democrática, constitucional, pacífica e eleitoral", segundo Allup, para buscar uma saída antecipada do presidente. Maduro foi eleito para um mandato de seis anos, em abril de 2013, após a morte de Hugo Chávez.
- Há planos para me atacar como presidente - denunciou Maduro, advertindo que os deputados terão imunidade, mas não impunidade, se "conspirarem" com um "golpe parlamentar".
A oposição acusou o governo, perante organismos internacionais, de tentar um "golpe de Estado judicial com a decisão do Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) - composto majoritariamente de chavistas - de suspender a proclamação de três deputados opositores e de um governista no estado do Amazonas, no sul do país.
A poucos dias da instalação da Assembleia, a maioria governista em final de mandato nomeou 13 juízes do TSJ, órgão que vai dirimir as disputas parlamentares. Também instalou o parlamento comunal, uma espécie de legislativo paralelo, como contrapeso a um parlamento de maioria oposicionista.
Em um comunicado, a União Europeia considerou que a instalação da Assembleia "será chave para a democracia na Venezuela". A previsão do analista José Ignacio Hernández para 2016, porém, não é nada animadora: "Crise econômica e social, e crise institucional", diz ele, sem quaisquer ressalvas.
Brasil manifesta preocupação
O Ministério das Relações Exteriores brasileiro informou que o governo comemora a instalação da nova Assembleia Nacional venezuelana e disse confiar que serão respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais do novo parlamento e de seus membros. Deixou clara, também, a preocupação brasileira. Em nota, o Itamaraty afirmou que "o governo brasileiro acompanha com atenção e interesse os desdobramentos das eleições legislativas venezuelanas realizadas no último dia 6 de dezembro, saúda a instalação da nova Assembleia Nacional venezuelana e insta todos os atores políticos venezuelanos a manter e aprimorar o diálogo e a boa convivência, que devem ser a marca por excelência das sociedades democráticas".
O recado está dado.
Para deixar isso ainda mais claro, o ministério acrescentou que o governo confia no respeito pleno à vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas - a preocupação é clara.
Diz a nota:
"(o governo) Confia, igualmente, que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito. Não há lugar, na América do Sul do século 21, para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito".