Nivalde de Castro é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador-geral do Grupo de Estudos sobre o Setor Elétrico (Gesel), um dos mais respeitados do país. Um de seus artigos mais recentes recebeu o título de Soluções Estruturais X Distrações Conjunturais, por identificar problemas de fundo ainda mais mais graves do que dores de cabeça recentes no setor. Uma é a troca de concessionário na Amazonas Energia, que deve espetar conta de R$ 8 bilhões para os consumidores, outro é o da Enel, ameaçada de perda de concessão por sucessivos episódios de demora no restabelecimento do serviço.
Há uma crise regulatória, um sintoma da "espiral da morte" ou ambos?
São duas coisas diferentes. A espiral da morte, conceito do Gesel, está associado ao crescimento de geração distribuída (GD). Foi dado subsídio em 2012 para quem instalasse, era uma indústria nascente. Quem tem teto e dinheiro pagaria só parte do uso da rede de distribuição. À medida que a GD cresceu, a distribuidora teve de investir para comportar. Quem se beneficia da geração distribuída paga menos do que deveria, e o custo é repassado aos outros, muitos sem teto e sem dinheiro. Essa é a espiral da morte. Quando há revisão tarifária, ocorre aumento porque foram feitos investimentos para comportar mais geração distribuída.
Como se configurou?
Em contexto de perda de harmonia do setor elétrico, composto por geração, transmissão, distribuição e comercialização. A partir de 2003, houve reformas para superar o apagão de 2001, com falta de oferta de geração e transmissão. Foi criada a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), o Operador Nacional do Sistema (ONS) se qualificou. As estimativas de demanda eram agregadas no Ministério (de Minas e Energia). Para atender, eram feitos leilões de energia nova, que se tornaram competitivos por gerar contrato com segurança jurídica. O mesmo na transmissão: ONS e EPE avaliavam o mercado e, para atender, eram feitos leilões por lotes. Como a inadimplência é zero, porque o custo da transmissão é rateado por todos os consumidores, o risco é zero. São investimentos e contratos seguros.
Isso já não funciona bem?
Fontes eólica e solar pagam metade da tarifa de transmissão e da tarifa de distribuição quando o investimento é voltado para o mercado livre. E na geração distribuída, que é a micro e minigeração, o consumidor deixa de pagar parte da tarifa de distribuição. Isso foi diminuindo o mercado da distribuidora. Então, a estimativa de crescimento de demanda é negativa. Não se faz mais leilão de energia nova, que dá contrato de 30 anos regulado. Entram no lugar contratos bilaterais de energia incentivada com subsídio. O sinal para energia incentivada e para geração distribuída, é investir porque tem subsídio.
É um efeito colateral do subsídio?
Quando o custo da tecnologia baixa, o que era benefício vira privilégio. É uma bolha que pode explodir no setor elétrico. Em 2023, os subsídios representaram 13,5% da tarifa média no Brasil no mercado cativo. E vai crescer. E se a tarifa sobe, há estímulo para buscar mais subsídio. A oferta está crescendo independente da demanda, porque a busca por esse privilégio se dá sem planejamento. Em determinados horários do dia e fins de semana há mais oferta do que demanda. O ONS tem de cortar a geração. Assim, o empreendedor que fez um contrato para gerar vende menos. Mas garantiu um financiamento, que terá de ser pago, com base na receita prevista, maior. Essa eu chamo de espiral do suicídio, em vez de espiral da morte. É uma decisão própria, e o modelo caminha para.
Está na hora de nova revisão da regulação?
Já passou da hora da modernização do setor elétrico. Tem vários projetos de lei, mas não avançam porque o governo, a começar pelo Ministério de Minas e Energia, perdeu o protagonismo da política energética. Até o governo Dilma, mandava-se uma lei para o Congresso e o Executivo tinha capacidade de articulação política. A perda do protagonismo começa no segundo governo Dilma, em que o Brasil entra em crise política, depois vem Temer e Bolsonaro, que não primou por impor a modernização da política energética. Agora, quem faz a política energética é o Congresso. Como é que muda algo em um Congresso que quer botar jabutis, que manteve o subsídio para usinas termelétrica a carvão até 2050? Tudo isso tem custo, que é repassado ao sistema, criando privilégios. Essa conta não vai fechar. Então, espero estar errado, espero que o governo acorde, porque caminhamos para uma crise financeira de judicialização. Está todo mundo atrás de privilégio. Quero garantir o meu e não pagar o subsídio do outro.
Com a perda da qualidade no serviço, a perda de concessão deve ser um instrumento de gestão de consequências? No caso da Amazonas, deve espetar mais de R$ 8 bilhões para os consumidores.
O da Amazonas é um exemplo da perda de protagonismo do Estado e, pelo que as evidências demonstram, favorecer o grupos específicos. É um caso que gera subsídios. O custo de geração termelétrica se transformou em pagamento de energia de reserva de potência, que todos pagam.
E no caso da Enel, em São Paulo?
No final dos anos 1990, foi criada a Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) e foi feito um contrato padrão. A distribuidora assina um contrato de 30 anos. Mas há 30 anos, não havia necessidade de maior resiliência de rede para vento de 100 km/h. Só o cálculo, a cada quatro anos, do número (FEC) e duração (DEC) das interrupções. Está previsto que esses dados têm de cair, para melhorar a qualidade do atendimento. E vêm diminuindo. Então, se pegar os índices DEC e FEC da Enel, está normal.
Mesmo se computar os últimos dias?
Como são resultado de eventos climáticos extremos, não pode usar o ponto fora da curva para medir. O problema em São Paulo foi que caiu no meio de uma eleição. O prefeito (Ricardo Nunes, MDB) jogou o problema para a Enel. A Enel diminuiu o investimento, mas não quebrou a regra da Aneel. Como foi no meio da eleição, a culpa é da Aneel, (presidente Luiz Inácio) do Lula (da Silva), do Tarcísio (de Freitas, governador de São Paulo), do (prefeito de São Paulo, Ricardo) Nunes, mas ninguém culpou o aquecimento que a cidade provoca. É uma superfície que só gera calor. A culpa é da emissão de gases de feito estufa. A prefeitura, o Estado e a União não têm programa para reduzir a emissão de gases no setor de transporte. Cerca de 1,3 mil carros ganham autorização para circular por dia em São Paulo.
Hoje não haveria justificativa técnica para perda da concessão?
Não, porque não pode quebrar um contrato de bilhões de investimento, que ainda não foi amortizado, por causa de um evento climático extremo.
O custo do aumento da resiliência do sistema tem de ser passado ao consumidor?
Faz parte do contrato. Se a Aneel autoriza investimento para dar mais resiliência para a rede frente a eventos climáticos extremos, quem paga é o consumidor, porque vai ser beneficiado. A Aneel não deixa empresas que não cumprem a meta para melhorar os índices DEC e FEC aumentarem a tarifa. Mas se apresenta melhora, tem benefício. É a regulação por incentivo.
O "tempo sem energia" não é excessivo?
A Enel, de São Paulo, tem 8 milhões de unidades consumidoras. De uma hora para outra, 3 milhões ficaram sem luz, por causa de vento, chuva, queda de árvore. Caíram 400 árvores. E quando a árvore cai em uma rede, falta energia de um lado e de outro. E é a prefeitura que tira a árvore. Tem de esperar a prefeitura chegar para restabelecer a luz. É uma situação extrema. A Enel, em menos de 24 horas, já tinha sido restabelecido 1 milhão. Uma semana depois, faltavam 30 mil.
Uma semana não é tempo demais?
Você já olhou a quantidade de postes que tem naquela cidade? Não tem como. O contrato que hoje rege as distribuidoras não previa isso. Agora, os eventos extremos, que vão se repetir com mais frequência e intensidade, sinalizam que, a resiliência de rede tem de estar nos novos contratos.
Isso significa custo para o consumidor?
É, não tem jeito. Mas também não é grande coisa. Possivelmente o que vai ser adotado é dar benefício para restabelecimento mais rápido.
Essa mudança só pode ser feita no vencimento dos contratos atuais?
Ou então se abre uma consulta pública, apresenta nota técnica, propondo a alteração. O está no contrato tem apoio da lei, então a mudança não pode ferir a lei.
O ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, chegou a falar em intervenção, não só na Enel, mas também na Aneel. É tentativa de interferência?
O ministro não tem essa autoridade, está se colocando como delegado de polícia no inquérito. É um erro grave, porque a Aneel é uma agência de Estado, não do governo. Seus diretores são homologados pelo Congresso e não podem ser demitidos, só em caso de roubo (falta grave). O ministro está prestando um desserviço, porque se trata de setor de capital intensivo, longo prazo de maturação. O pior que pode haver é incerteza. A Aneel não pode, da noite para o dia, fazer uma intervenção. É uma preocupação, porque talvez queira repetir o que fez na Petrobras. Em uma entrevista, o ministro demitiu o presidente da Petrobras. Nesse caso, é uma agência de Estado. A Aneel é a melhor agência reguladora de infraestrutura do Brasil pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Foi graças à Aneel que os investimentos foram feitos, houve aumento de capacidade de geração, transmissão.
Também é do jogo qu a Aneel multe distribuidoras, da Equatorial à Enel, e os valores não sejam pagos?
Não são pagas porque as distribuidoras entram na Justiça. É um direito delas. A Aneel tem argumentação, discute, mas lá na frente vai pagar, com correção monetária.