"O politicamente correto é insuportável"; "o grande problema deste país é ser politicamente correto". Você, certamente, já ouviu essas frases. A última é de Donald Trump; a primeira, de um articulista conservador que se imagina liberal. O liberalismo por aqui é uma espécie de ornitorrinco, algo como uma colagem oportunista. Nossos liberais falam em democracia e em liberdade, claro, o que não os impediu de servir à ditadura e de coletar fundos para a Oban; eles criticam o gigantismo do Estado e defendem o mercado, sim, mas gostam mais do BNDES e de juros que assegurem o futuro da banca e de seus descendentes até o final dos tempos. Os liberais brasileiros não reconhecem a tradição do direito de escolha (pro choice) no debate sobre o aborto, nem a ideia de que os adultos são soberanos para decidir que ingerem ou inalam. Quanto aos costumes, a propósito, nossos liberais seguem com um terço nas mãos e com uma ameaça entre os dentes.
Abro um parêntese: a esquerda brasileira tampouco é liberal. Para ela, liberalismo é um palavrão, resultado da redução do conceito a sua expressão econômica, desconsiderando a tradição dos direitos civis e a própria ideia de direitos humanos. Por conta disso, a esquerda menospreza as características patrimonialistas do Estado brasileiro e a ineficiência que protege interesses corporativos e que conspira contra o povo. Para a esquerda, o problema se resume à direção política do Estado e o mercado não possui possibilidades virtuosas, apenas sua dimensão concentradora e excludente. Não por acaso, a agenda da reforma do Estado foi entregue em uma bandeja à direita. Temer e seus visigodos (primos dos ostrogodos apeados do poder) avançam sobre a Previdência e sobre os parcos direitos civilizatórios, tarefa facilitada porque o fazem sobre um deserto de ideias. Fecho o parêntese.
O ator José Mayer foi acusado por uma figurinista de tê-la assediado. Ele negou a história; depois, desculpou-se e foi afastado pela Globo, sob pressão de feministas e atrizes ("Mexeu com uma, mexeu com todas"). Atos de desrespeito às mulheres e expressões misóginas são corriqueiros no Brasil, mas passaram a ser mais custosos com o politicamente correto. Não fosse essa mudança cultural, seguiriam parte da paisagem e a figurinista talvez nem tivesse cogitado denunciar. Sim, talvez o politicamente correto esteja tornando o mundo insuportável para os metidos a garanhão e para os que espancam suas companheiras. Uma boa notícia, enfim.
Expressão maior da sanha contra o politicamente correto entre nós, Bolsonaro fez palestra no clube Hebraica do Rio. Ali, foi ouvido por pessoas que riram quando se referiu aos quilombolas, dizendo que "os afrodescendentes não faziam nada" e que o mais leve pesava "sete arroubas e nem para procriar servia". Riram também quando ele disse que tem cinco filhos, "quatro são homens, no quinto dei uma fraquejada e veio uma mulher". Acompanhei o vídeo da "palestra" e tudo me pareceu inacreditável. A vastíssima ignorância e o ódio e os preconceitos do bufão nazista são notórios, mas que pessoas medianamente instruídas pudessem aplaudir alguém que defende a tortura; que acha que se deve construir três usinas hidroelétricas em Roraima, mas que "encheram de índios por lá"; que, se for presidente, irá revogar os decretos de preservação ambiental para explorar o turismo e outras bizarrices, tudo isso me pareceu impressionante. O evento foi classificado pelo médico Nelson Nisenbaum como uma "grave ofensa ao legado humanista do judaísmo". Na mesma linha, a cineasta Ieda Rosenfeld criticou o fato de haver "300 judeus cegos" aplaudindo o sujeito e a Confederação Israelita do Brasil (Conib) lançou nota, criticando o ato e reafirmando "o respeito absoluto a todas as minorias". Em São Paulo, abaixo-assinado com mais de 2.600 nomes da comunidade judaica obrigou o cancelamento de evento semelhante.
O que nos separa de Bolsonaro não é a ideologia, mas a humanidade. Aplaudir um defensor da tortura e um incitador ao estupro é o mesmo que se esquecer da Shoá. As diferenças políticas e ideológicas estão a anos-luz deste marco. O Brasil precisa de posições de direita e de esquerda, conservadoras e progressistas, como se queira, mas civilizadas. Será pedir muito?
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