Os gaúchos sentiram um alívio nesta semana quando souberam que a polícia havia descoberto um túnel, já com 20 metros escavados, nas cercanias do Presídio Central. A obra, caso concluída, possibilitaria a fuga de centenas de presos, esvaziando pelo menos uma galeria daquele que é considerado um dos piores e mais superlotados presídios brasileiros. O desfecho de contornos cinematográficos foi, felizmente, frustrado pela antecipação da polícia, o que chama a atenção para a importância da inteligência na segurança pública.
A expressão "inteligência policial" diz respeito a uma capacidade específica de produzir, buscar e analisar informações sobre fatos e situações que podem afetar o processo decisório dos governos na área da segurança. A inteligência policial deve auxiliar os gestores para que iniciativas precisas sejam tomadas no sentido de neutralizar, impedir ou reprimir ações delituosas que configurem ameaças reais ou potenciais à segurança da sociedade e do Estado. A descoberta do túnel foi, nesse sentido, uma ação de inteligência policial que merece elogio. A mais grave ameaça das prisões não é oferecida por um túnel, mas por um funil.
Refiro-me à crescente demanda por encarceramento que criou, no Brasil, a terceira maior população prisional do planeta, apenas superada pelos EUA e pela China. Em regra, imagina-se que nossas cadeias estejam abarrotadas de assassinos, estupradores e por toda sorte de bandidos especialmente perigosos. Fosse assim, nossos problemas seriam muito menores. O que ocorre verdadeiramente é algo bem diferente. 40% dos presos brasileiros sequer foram julgados. Muitos deles, em vários Estados, irão aguardar por meses antes de serem interrogados por um juiz. Os dados sobre a população carcerária brasileira mostram que aproximadamente 10% dos presos estão detidos por processos que envolvem homicídios. No RS, este percentual é ainda muito menor. No Presídio Central, dos 4.567 presos que lá estavam ao início da semana, apenas 94 haviam sido condenados ou respondiam a processos em casos de homicídio, o que significa 2% da massa carcerária. Em compensação, 2.368 presos respondiam por tráfico de drogas, o que perfaz 52% do universo. Percentuais semelhantes se repetem nas demais casas prisionais do Estado.
Esses números evidenciam uma verdade incômoda: a maioria dos presos, no Brasil e no RS, não responde pela prática dos crimes mais graves e parte expressiva – cerca de 20% se considerarmos apenas as absolvições entre os preventivos – sequer praticouos crimes pelos quais foi detida. Mas há muito mais a perceber. Imaginemos que o túnel abortado tivesse alcançado a primeira galeria de um dos pavilhões do Central e que ali houvesse 300 pessoas. Há galerias com muito mais gente, mas tomemos esse número apenas como uma referência daquilo que seria uma espetacular fuga em massa. Pois bem, em menos de dois meses, essa é, aproximadamente, a população prisional que sai legalmente só do Presídio Central. Essa é a outra ponta do funil que não chama atenção, não produz alarme social, nem rende manchetes. É com ela, entretanto, que deveríamos nos preocupar.
A dinâmica é conhecida, mas segue sendo desconsiderada em termos de política de segurança. A boca do funil recolhe, majoritariamente nas periferias das nossas cidades, jovens muito pobres e semialfabetizados, negros em grande parte, envolvidos com drogas e com crimes patrimoniais. Eles são, então, conduzidos aos presídios, onde serão recrutados pelas facções. Ao final de um período de segregação, eles retornam ao convívio social, agora com tarefas mais complexas e tendencialmente violentas definidas pelo bando ao qual se vincularam na prisão. Os egressos que escaparem a essa dinâmica e que forem procurar espaço no mercado de trabalho serão recebidos por avassalador estigma social. Para eles, simplesmente, não haverá uma chance. O funil se fecha, assim, em torno da produção sistêmica e ampliada de mais crime e mais violência.
Ou o Brasil repensa isso, ou as coisas ficarão ainda piores.
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