Futebol de praia. Sete para cada lado, perdedores pagam a cerveja. Todos amigos, tudo em paz. Mas o homem não teria chegado aonde chegou, na sua trajetória sobre a Terra, se não fosse um animal orgulhoso. Com a possível exceção do pavão, nenhum outro animal se ama como o homem. E aconteceu o seguinte: o Américo passou a bola pelo meio das pernas do Célio. Não uma, mas duas vezes.
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Nenhum amor-próprio resiste a uma bola pelo meio das pernas. Que dirá duas. O homem aprendeu a conviver com as agruras da existência preservando o seu amor-próprio. Insucesso nos negócios, frustrações privadas e públicas – tudo faz parte dos desafios da vida moderna que o homem enfrenta com seu orgulho intacto, confiante em que os superará. Ou pelo menos que saberá explicá-los. É exatamente o orgulho que faz o homem vencer os grandes infortúnios e as pequenas indignidades e seguir em frente. Tudo pode ser absorvido ou justificado. Menos duas bolas pelo meio das pernas no mesmo jogo. Ainda mais as pernas de um brasileiro.
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O Célio reclamou para o Américo:
– Não faz mais isso.
– Qual é, cara?
– Pelo meio das pernas, não.
– É brincadeira!
– Faz isso de novo e eu vou na sua pleura.
O Célio não sabia exatamente onde ficava a pleura, mas era onde bateria se o Américo passasse a bola pelo meio das suas pernas outra vez.
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É preciso saber que os dois trabalhavam na mesma firma e o Célio era o superior do Américo. Poderia botar o Américo na rua. Pior do que um pontapé na pleura.
– Está bom, está bom – disse o Américo. – Não faço mais.
E foi jogar do outro lado, onde seu marcador seria, de preferência, um hierarquicamente inferior que ele pudesse driblar à vontade.
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Mas aconteceu de o Américo ser lançado num contra-ataque pelo meio e ver pela frente, como último defensor do adversário, o Célio. E aqui entra outra característica do homem brasileiro, o seu peculiar senso de prioridades. De certa forma, um corolário ao seu pânico congênito de levar bolas por entre as pernas. E também uma questão de amor-próprio. Pois, se todos os homens se amam, o homem brasileiro ama algumas coisas em si acima de todas as outras.
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Não se diga que Américo apenas seguiu seu instinto, sem pensar. Pensou muito, enquanto corria com a bola dominada na direção do Célio. Pensou no seu casamento, que teria de ser adiado se ele perdesse o emprego. Pensou nas vantagens para o seu bem-estar e o seu futuro se ele perdesse a bola para o Célio. E o Américo enfiou a bola entre as pernas do Célio e foi buscá-la lá na frente, para fazer um gol espetacular, escapando do pontapé que Célio tentava lhe dar por trás. O que é mais importante? Diga lá, brasileiro: a vida, o emprego, o salário garantido no fim do mês, o casamento, ou um gol perfeito? Um gol perfeito, claro.
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Mas o Américo, afinal, não foi despedido. Célio não apareceu na firma na segunda-feira. Não foi mais visto. Levar três bolas pelo meio das pernas num único jogo é, parece, uma espécie de limite extraoficial da humilhação.
Dizem que ele emigrou.