Doha ficou para trás. Foi bom enquanto durou. Restaram as lições desta Copa do Mundo árabe. Muitas lições. Foram 29 dias mágicos, de puro futebol, de ideias antagônicas medindo forças, de estratégias colocadas à prova, de grandes craques confirmando, de nomes históricos saindo de cena, de novos talentos emergindo.
A força da Copa é capaz de produzir tudo isso em quatro semanas. Mas também é capaz de esfarelar teses e análises definitivas. Até porque, em um torneio no qual tudo se decide em sete jogos, nada é definitivo. Inferno e céu estão separados por um frame. Tudo pode mudar em fração de segundo.
Olhem o caso da Argentina. O que seria da linda história construída pelos hermanos se Dibu Martínez não salvasse o chute de Kolo Muani aos 17 minutos do segundo tempo da prorrogação? Iriam para o espaço todas as teses construídas em cima da resiliência argentina, da bravura de seus jogadores, da identificação com a seleção e as cores azul e branco de um país inteiro.
Um pé de Dibu Martínez separou o céu do inferno. Em vez dos heróis que superaram cada etapa jogando com o coração e alimentando a alma do povo, seria a seleção que quase levou gol no final da Austrália nas oitavas, evitado por Dibu, foi bafejada pela sorte contra a Holanda e salva por Dibu e que caiu contra a França porque nem sempre seu magnífico goleiro salvaria.
A Copa, mais uma vez, nos ensinou que o Império do Resultado é traiçoeiro. Um pé no caminho pode mudar tudo, para o bem e para o mal. Por se tratar de um torneio curto, que neste ano ainda teve menos dias, uma noite mal dormida ou um surto de gripe do camelo pode derrubar quatro anos de trabalho. Nenhuma tese resiste a um torneio que conta com os melhores do mundo, com jogadores que mudam o rumo de um jogo com um segundo de vacilo do adversário. Tudo é muito rápido.
Marrocos
Vamos a dois exemplos. Sempre se pregou que a continuidade é o segredo do sucesso. O que é estritamente verdadeiro. Porém, eis que aparece um certo Walid Regragui e leva o Marrocos à histórica semifinal da Copa com apenas três meses de trabalho. Sim, o Marrocos trocou de técnico a 90 dias da Copa e mandou às favas a continuidade do bósnio Vahid Halilhodzic, no cargo havia três anos.
Outra: é consenso de que o improviso é um corpo estranho no alto nível de profissionalização que atingiu o futebol. Só que nada foi mais improvisado do que o começo de Lionel Scaloni na seleção argentina. Ele nunca havia comandado uma equipe profissional.
O currículo de Scaloni como técnico se resumia ao torneio sub-20 de L'Alcudia, na Espanha, em 2018, pouco antes de se integrar como auxiliar na comissão técnica de Jorge Sampaoli na Copa da Rússia. Depois da conturbada passagem de Sampaoli, a AFA ficou sem rumo. Decidiu iniciar o ciclo 2022 com Scaloni de interino, até que convencesse algum dos seus técnicos estrela a trocar um grande emprego na Europa pela cadeira quente da Seleção. O novato foi ficando, ficando, ficando e acabou efetivado. Mais por falta de alternativas do que por convicção.
Tenho certeza de que o pé de Dibu um pouco mais para o lado no chute de Kolo Muani e a virada francesa certamente trariam para as análises a falta de experiência de Scaloni. "Como ele não percebeu a guinada mental ocorrida no jogo?", questionariam. Só que o pé de Dibu estava no lugar certo, e a pouca rodagem de Scaloni não fez qualquer diferença.
Vale o mesmo para a Seleção Brasileira. O tribunal das redes sociais condenou quase todo mundo. Começou por Alisson. Que, pelos tuítes e postagens, não reage com rapidez, não faz defesas espetaculares, não defende pênalti. Ninguém se lembra de que Alisson foi o melhor goleiro do mundo em 2019, finalista em 2021 e segundo melhor em 2022, atrás de Courtois.
Para Tite, sobrou a artilharia mais pesada. Ele parecia vaticinar na véspera do jogo contra a Croácia o tsunami que viria. Na entrevista coletiva, reforçou a ideia de jogo do time, avisando que ela sempre apontaria para a frente, ao ataque. Jogar de forma ofensiva era algo sempre cobrado dos técnicos da Seleção.
Tite pagou pela ousadia de atuar com quatro atacantes, mais um meia vindo de trás. Pagou por apostar em um modelo de jogo agressivo, de linhas adiantadas, baseado em ideias usadas pelos principais técnicos do mundo nas principais ligas. Algo que o Brasil pouco vê por aqui, um time que marcava atacando. Ou atacava marcando. Tanto que Alisson só foi sofrer o primeiro chute a gol contra a Coreia do Sul.
O segundo tempo da prorrogação contra a Croácia foi de menos posse de bola e tentativa de controle. É evidente que houve erro de Tite. Talvez tenha faltado a lucidez para conter o ímpeto do time naquele momento de adrenalina nas nuvens. Quem sabe uma orientação para arrastar o jogo. Embora isso não seja do seu perfil.
Algo faltou para evitar a fatalidade. Só que a fatalidade é aquela visita surpresa. Ela não chega, invade. A Croácia deu um chute a gol em 130 minutos. Um só, que desviou no zagueiro e saiu do alcance do goleiro. Ali, o Brasil tombou.
A Copa mostrou-lhe sua faceta mais cruel, a de uma competição que se define no detalhe. O que a torna mais fascinante e uma armadilha para quem é definitivo nas análises. A resposta numa Copa, fique bem atento, está bem mais além do placar. Muitas vezes, está naquele pé um pouco mais para o lado. Ou no desvio de cabeça. E isso é do jogo.