J.J. Camargo

J.J. Camargo

Médico, escritor e palestrante. Formou-se em Medicina na UFRGS em 1970, especializando-se em cirurgia torácica e completando sua formação acadêmica na Clínica Mayo, nos EUA. É colunista do caderno Vida, de ZH.

Palavra de médico

O que o Natal faz com a gente

Três histórias de médicos que foram além

J. J. Camargo

Carlos Macedo / Agencia RBS
Cansado, suado e irritado, o Papai Noel ouviu um pedido que o desarmou

O Natal não faz ninguém mais doce, mas quem for derrete. 

Geraldo Ari é um médico carioca que se notabilizou por uma rotina de 30 anos: na véspera de Natal, fantasiado de Papai Noel, subia os morros carentes do Rio com uma sacola de brinquedos. Confidenciara aos amigos que nada o encantava mais do que a alegria de crianças pobres, recebendo presentes. 

Naquela tarde, já velho e cada vez mais parecido com Papai Noel, com sobrepeso e fôlego curto, subiu o morro do Complexo do Alemão com dificuldade e fez várias paradas para respirar. A roupa de seda, o gorro e a barba postiça, ao sol escaldante, não ajudavam. Mas, no topo, a canseira se dissipou pela euforia da molecada, surpreendida pela descoberta de que Papai Noel existia sim, contrariando o realismo decepcionante dos pais

No desespero, não há consolo maior do que saber que, em algum lugar, há alguém. Por nós.

Distribuídos os presentes com festejos intermitentes, ele começou a retornar. O trajeto da volta em declive facilitava a marcha, mas o nosso herói anônimo já suava muito, quando foi interrompido pela voz estridente de um menino: "Papai Noel, Papai Noel!". Quando o chamado se repetiu, ele parou, e sem disfarçar a irritação, perguntou: 

O que você quer, menino? Eu não tenho mais presentes!

E então teve de ouvir: 

Eu só queria mandar lembranças pra Deus!

Ele completou a descida misturando suor e lágrimas. 

Durante uns 50 anos, Milton Meier colocou a doçura do seu coração a serviço da correção de coraçõezinhos defeituosos, no Rio de Janeiro. Por este caminho, chegou às suas mãos talentosas o André, um garoto com uma cardiopatia congênita que não lhe permitia crescer. A cirurgia transcorreu sem sobressaltos, e os pais ouviram, aliviados, que ele estaria em casa no Natal, a tempo de comemorar seu aniversário. 

Na manhã seguinte, quando os efeitos da anestesia já deveriam ter passado, o André não acordou. A despeito de todos os exames normais, ele continuava dormindo, respirava preguiçosamente e necessitava de aparelhos. Eram outros tempos aqueles, e, após operações cardíacas, as lesões neurológicas não eram raras. Três ou quatro dias se passaram, chegou a noite de Natal e o André continuava na UTI, necessitando de cuidados. Desolado, o Milton  decidiu ficar com ele: 

Estávamos sós, o dorminhoco, uma enfermeira e eu. Pouco depois da meia-noite,  me aproximei da cama e comentei com a enfermeira: sabes quantos anos ele vai fazer? O André mexeu-se, abriu os olhos, levantou o braço e mostrou: quatro dedinhos. Quarenta anos se passaram e a emoção daquele Natal me acompanhou em todos os que vieram depois! 

Relendo o Livro dos Abraços, do Eduardo Galeano. encontrei esta pérola: 

"...Fernando Silva dirige um hospital infantil em Manágua. Na véspera de Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Já estavam soltando foguetes e começavam os fogos artificiais a iluminar o céu, quando Fernando decidiu ir embora. Em sua casa, o esperavam para festejar. Fez então uma última visita às enfermarias, vendo se tudo estava em ordem, quando sentiu que alguns passos o seguiam. Uns passos de algodão: voltou-se e descobriu que uma das crianças andava atrás dele. Na penumbra, o reconheceu. Era um menino que estava só. Fernando reconheceu seu rosto já marcado pela morte e aqueles olhos que pediam desculpa ou, talvez, pedissem permissão... Fernando se aproximou e o menino o tocou com a mão: 

Diga a...   sussurrou o menino Diga a alguém que estou aqui." 

No desespero, não há consolo maior do que saber que, em algum lugar, há alguém. Por nós. 

GZH faz parte do The Trust Project
Saiba Mais
RBS BRAND STUDIO

Futebol da Gaúcha

17:45 - 20:30