A Espanha superou a polêmica da chamada "castração química" (tratamento temporário aplicado com consentimento de quem é reincidente em crimes sexuais) mostrando resultados: 94% dos condenados submetidos à terapia não voltaram a cometer os mesmos crimes. A história é contada no livro Castração Química, Liberdade Vigiada e Outras Formas de Controle de Delinquentes Sexuais, da delegada Elisangela Melo Reghelin, baseado na sua tese de doutorado defendida em Madri. Elisangela pesquisa crimes sexuais há mais de 10 anos. Ela comparou as medidas adotadas em diversos países. Acredita que o caso do homem que ejaculou em uma passageira em um ônibus em São Paulo e, solto, cometeu o mesmo crime, possa fazer o debate sobre o tema avançar no Brasil.
Por que a castração química é um tabu?
Porque mexe com uma série de mitos, inclusive no mundo jurídico. A castração química é um tratamento hormonal com um medicamento que se encontra no mercado e que não foi criado para "castrar" um indivíduo. O remédio trata algumas doenças e tem objetivo de reduzir a produção de testosterona, diminuindo a libido. Esse tratamento não opera milagres, mas, para algumas pessoas, pode apresentar resultados promissores. Há pesquisas que comprovam a queda na reincidência de crimes sexuais em países nos quais a castração química é prevista.
A resistência em adotar o tratamento no Brasil se dá por falta de informação ou alguma questão ideológica?
As duas coisas. Há questões relacionadas à sexualidade, e o assunto, pela ótica científica, ainda é pouco discutido no Brasil. Na Europa, por exemplo, esse é um tema presente na academia, no Judiciário e na rede de saúde há muitos anos. Aqui, sempre surgem questões religiosas e argumentos com viés político partidário. O tratamento tem efeito temporário, e isso nem sempre é levado em conta nos debates.
Leia outras entrevistas de Scola:
Ganhador da Mega Sena em 2010, Ortenilo João Nicolau quer ganhar de novo
Biógrafo de Marighella e Carlos Lacerda: "Material inédito é monumental"
No caso do abusador de São Paulo, se houvesse castração química, a senhora acredita que o desfecho seria outro?
Como ele já tinha histórico de crimes sexuais, provavelmente sim. Indivíduos que praticam esses crimes, após cumprir a pena, recebem uma medida chamada "liberdade vigiada", com acompanhamento. A castração química é uma alternativa para evitar que ele volte a cometer crime sexual.
A castração química se aplica a todos os casos de abusadores?
Não. Essa é uma medida que pode ser alternativa para quem admite a possibilidade de ser submetido ao tratamento. Nos casos extremamente graves, de psicopatas sexuais, não adianta: eles não vão mudar. Não faz sentido pensar nisso para um serial killer que abusa de suas vítimas.
O que é consentimento informado?
A pessoa que recebe o tratamento formaliza que tomou ciência dos procedimentos, suas consequências e efeitos colaterais da medicação. Diz se quer ou não o tratamento. Trata-se de uma supressão hormonal, que pode ser revertida assim que ele parar de tomar a medicação.
A punição prevista em lei no Brasil para quem comete crime sexual é subjetiva?
Muito. O problema é a distância entre dois pontos extremos. De um lado, há o estupro, que é crime hediondo e exige a violência física ou a grave ameaça. E isso está bem configurado do ponto de vista penal. Mas há o outro extremo, que é a lei das contravenções penais, um delito pequeno, configurado como "importunação ofensiva ao pudor", que não prevê pena de privação de liberdade. Um avanço em termos legais seria uma alteração da lei que pudesse tipificar de forma mais clara as agressões sexuais. Isso certamente evitaria decisões controversas.
Leia mais:
Senado aprova PEC que torna o estupro crime inafiançável e imprescritível
Padre suspeito de abusos contra crianças é indiciado por estupro em SC
A castração é uma pena ou uma medida de segurança?
Não é uma pena. É uma medida que depende, inclusive, do consentimento do delinquente. Ele tem de concordar. Isso lhe garante a redução do tempo de permanência na cadeia. Na Espanha, os crimes sexuais continuam sendo punidos com prisão. A castração química ajuda a evitar a reincidência do crime, além da pena.
Depois do que aconteceu em São Paulo, a senhora acredita que deve avançar o debate sobre o tema no Brasil?
Sem dúvida. Quando comecei a pesquisa sobre castração química, só encontrei referências superficiais no Brasil. O que é importante deixar claro é que, no país, o sistema penal separa muito claramente o que é pena e o que é medida. O delinquente sexual pode cumprir a pena e ficar livre de medidas que possam evitar que ele volte a reincidir. E, em se tratando de crimes sexuais, a reincidência é muito provável. O debate que precisa ser feito no Brasil é: só a pena é suficiente? Países que adotaram a castração química provam que não. Alemanha, EUA e, sobretudo, Espanha aplicam as penas acompanhadas de medidas de tratamento.