Todas as manhãs, uma fila de adultos, crianças e adolescentes se forma no estreito corredor decorado com flores amarelas do Centro de Referência em Atendimento Infanto-juvenil (Crai) de Porto Alegre. Atrás de paredes recobertas de desenhos infantis, os pesadelos das vítimas de abuso sexual atendidas na unidade são convertidos em provas forenses, para evitar que se repitam.
O atendimento é realizado por peritos experientes e comprometidos com a atenção humanizada. Nos primeiros seis meses de 2023, foram realizadas 2.973 perícias de casos suspeitos de abuso sexual em todo o RS. Em termos comparativos, durante todo o ano de 2020 foram realizadas 2.152 perícias, ou seja, 38% a menos do que no primeiro semestre deste ano.
Criado há 22 anos, o espaço, que funciona no sexto andar do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas recebe pessoas de até 18 anos vítimas de abuso sexual. Além da Capital, o serviço também existe em outros 17 municípios, mas, segundo levantamento da Secretaria Estadual da Segurança Pública, a maioria dos casos atendidos no RS se concentra na Região Metropolitana.
De 1º de janeiro a 30 de junho deste ano, o Crai de Porto Alegre fez 1.155 perícias, maior número de procedimentos no Estado, seguido de Canoas, onde foram realizadas 437 avaliações periciais no mesmo período. Em média, o Crai realiza cerca de 1,5 mil perícias psíquicas e 1,2 mil perícias físicas por ano. Das vítimas atendidas, 70% são meninas.
Evitar revitimização
O diretor-geral adjunto do Instituto-Geral de Perícias (IGP), Maiquel Luís Santos, reitera que o serviço é pioneiro no país. Ele frisa que os profissionais do IGP seguem modelo internacional de referência em atendimento a crianças vítimas de violência, difundido pela Universidade do Porto, de Portugal, que auxilia nas capacitações da equipe.
— É um serviço que evita a revitimização dessas crianças, para que elas não tenham que sempre contar e recontar a história do abuso sofrido. Então, em um atendimento, se consegue escutar ela, é feito um laudo pericial, baseado principalmente nos sintomas que ela tem, para se definir se realmente houve ou não algum tipo de violência — explica o diretor.
Perícia psíquica
Em dias comuns, a unidade da Capital realiza de 10 a 12 atendimentos, entre perícias e casos encaminhados para análise. Segundo a coordenadora, após datas festivas, como feriados em que ocorrem reuniões familiares, o número aumenta, podendo chegar a 20.
A diretora do Departamento Médico-Legal e coordenadora pericial do Crai, Angelita Maria Ferreira Machado Rios, explica que esse aumento sazonal se dá em razão de casos de abuso sexual intrafamiliar, que representam, segundo a coordenadora, entre 1% e 2% das denúncias. Muitos desses casos envolvem dependência econômica e emocional e acabam sendo mantidos em segredo, em uma tentativa de “preservar” a família.
Às vezes, uma criança revela uma situação abusiva dias, meses e até anos depois
ANGELITA RIOS
Coordenadora pericial do Crai
Em apenas 4% dos casos atendidos há vestígios físicos dos abusos, como ruptura himenal, gestação ou infecção sexualmente transmissível. Para os outros 96% dos casos, o principal elemento pericial é o depoimento da vítima.
— É aí que entra a perícia psíquica, que nem sempre surge no momento do fato. Às vezes, uma criança revela uma situação abusiva dias, meses e até anos depois. Por isso tem essa diferença de números dos casos físicos que, em geral, chegam numa situação mais aguda e a autoridade já pede perícia física e perícia psíquica. Mas tem aqueles casos que vêm apenas para perícia psíquica porque se passou muito tempo — explica.
Como os casos chegam ao Crai
Os casos que chegam ao Crai são encaminhados pela Polícia Civil, a partir de denúncias que podem ser conduzidas por diferentes caminhos, como:
- Assistência social
- Serviços de saúde
- Professores
- Pela própria família que, em alguns casos, é obrigada por força da lei
A coordenadora pericial do Crai, Angelita Rios, explica que nem todos os casos que chegam ao espaço resultam em perícia. Alguns deles podem ser reencaminhados ao Conselho Tutelar para avaliação, por exemplo.
Profissionais que atuam na unidade
Os atendimentos no Crai são realizados por equipe multidisciplinar composta por:
- Médicos-legistas nas áreas de Sexologia Forense e Psiquiatria
- Peritos criminais da área da Psicologia
- Assistentes sociais
- Psicólogos
- Psiquiatras
- Pediatras
- Ginecologistas
- Advogados
- Policiais civis
Como denunciar
- Disque 100: recebe denúncias sobre violência contra criança e adolescente em todo o País
- Brigada Militar: pode ser acionada pelo 190 em qualquer cidade do RS
- Polícia Civil: basta ir à delegacia mais próxima ou repassar a informação pelo telefone de forma anônima. É possível utilizar o Disque Denúncia pelo 181. A Divisão Especial da Criança e do Adolescente (Deca) em Porto Alegre atende pelo telefone 0800-642-6400
- Conselho Tutelar: denúncias são verificadas. Em Porto Alegre, há plantão na Rua Fernando Machado, 657, Centro Histórico, inclusive durante a noite e aos fins de semana. Em casos de emergência é possível ligar para os telefones (51) 3289-8485 ou 3289-2020. O endereço e telefone de cada uma das unidades podem ser conferidos neste link.