Previsto para às 8h30min, começou com atraso de mais de uma hora o júri dos três réus pelo assassinato de uma garota de 12 anos em Porto Alegre. Laisa Manganeli Remédios desapareceu em setembro de 2016 e, segundo a acusação, foi decapitada por uma facção criminosa. Pouco antes do julgamento, foi necessário fazer a troca do juiz que presidiria a sessão. Segundo o Judiciário, o atraso se deu por questões logísticas para o transporte de um dos réus, e não pela troca de magistrado.
Entre os réus, está José Dalvani Nunes Rodrigues, 40 anos, o Minhoca, apontado como um dos líderes de uma facção com berço no bairro Bom Jesus. A acusação sustenta que ele foi o mandante do homicídio brutal da garota, cujo corpo nunca foi encontrado. Os outros réus são Gustavo da Luz Marques, o Buguinha, e Douglas de Sá Gomes, o Faísca. Os três negam envolvimento no crime. Essa é a terceira tentativa de realizar o júri, que foi adiado duas vezes.
A juíza Cristiane Busatto Zardo, que presidiria o júri, apresentou um problema de saúde. Por isso, precisou ser substituída, de última hora, pelo magistrado Thomas Vinícius Schons. José Dalvani, que está segregado em penitenciária federal em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, só chegou ao Fórum pouco depois das 9h20min, escoltado pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Os demais réus já estavam no local desde o início da manhã.
Às 10h, foi dado início ao sorteio dos nomes dos sete jurados. Logo no começo, o juiz se desculpou pela demora, e em seguida passou a retirar os nomes da urna. As defesas dos três réus recusaram ao todo oito nomes — cada parte pode dispensar até três sem apresentar justificativa. Por fim, quatro mulheres e três homens formaram o Conselho de Sentença.
Na sequência, o juiz solicitou que os réus ingressassem no plenário. José Dalvani foi o terceiro a ser escoltado — os três se posicionaram um ao lado do outro, próximo das bancas de defesas. Na plateia, que conta com poucas pessoas, alguns familiares, da vítima e dos acusados, acompanham a sessão.
Delegado é primeira testemunha
Às 10h40min, foi dado início ao depoimento das testemunhas. O primeiro a falar foi o delegado Gabriel Bicca, que na época do crime era diretor da Divisão de Homicídios de Porto Alegre. O primeiro a fazer questionamentos ao delegado foi o promotor Luciano Vaccaro, representando o Ministério Público.
Bicca iniciou a fala detalhando o cenário de violência que vivia Porto Alegre no período entre 2016 e 2017. Relembrou que, naquele momento, decapitações e esquartejamentos eram frequentes, num contexto de extrema violência. Afirmou ainda que havia intenso confronto entre a facção da qual Minhoca é acusado de ser um dos líderes e outro grupo, que surgiu após a coalizão de diversas quadrilhas.
O delegado relatou que o caso inicialmente era investigado pela então Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, mas que foi uma delação premiada, de um ex-gerente do tráfico, que levou ao desfecho do crime por meio da equipe que apurava homicídios. O delator Douglas Gonçalves Romano ingressou num programa de proteção a testemunhas, após detalhar à polícia e ao Ministério Público como teria acontecido série de crimes cometidos pela facção.
— Um dos primeiros, senão o primeiro caso que ele trouxe foi o do Laisa. Contou toda a dinâmica de como teria acontecido o fato — explicou o delegado.
Segundo o relato do delator, Laisa estava na casa de um traficante, que desconfiou que ela estivesse repassando informações para uma facção contrária. Em razão disso, José Dalvani teria ordenado o assassinato da menina. A garota teria sido levada até uma região de mata, após ser mantida horas em cárcere, e decapitada com um machado. Logo depois, seu corpo teria sido enterrado.
— Houve diversas tentativas de localizar o corpo dela, mas não houve sucesso. É uma região bem extensa, que oferece dificuldades — disse Bicca.
Questionado pelo promotor sobre a participação de cada um dos réus, o delegado disse que o delator afirmou que José Dalvani foi quem ordenou a morte, por telefone, pois estava preso. Gomes seria o responsável pela decapitação da menina. Já os outros teriam participação ao cavar a cova, segundo o delegado. Mais tarde, um dos gerentes do tráfico envolvidos nesse crime teria cometido suicídio ao saber que a garota tinha apenas 12 anos.
Logo após o MP fazer os questionamentos, as defesas passaram a indagar o delegado. A banca responsável por defender José Dalvani faz perguntas sobre a delação. O advogado Jean Severo lembrou que o delator foi assassinado a tiros em Santa Catarina, após deixar o programa de proteção a testemunhas. Também sustentou que o cliente, apontado como líder da facção, não possui bens em seu nome e seus familiares seguem residindo no mesmo bairro. O depoimento do delegado foi encerrado às 11h41min.
A delação
A delegada Luciana Smith narrou como se deu a delação premiada. Segundo ela, o delator procurou a polícia dizendo: "Tenho várias informações sobre a facção Bala na Cara e vocês me perguntem o que quiserem".
A policial disse que percebeu que o homem que afirmava ser gerente do tráfico da facção realmente tinha informações sobre os homicídios e o tráfico de drogas.
— Toda a guerra era vinculada ao tráfico — afirmou Luciana.
A delegada lembrou que o delator na época afirmou que estava em risco e que tivera atritos com a facção após a morte de amigos dele. Por isso, ela sugeriu que ele ingressasse no programa de proteção a testemunhas.
A defesa alega que os advogados que assistiram o delator foram indicados pela Polícia Civil e que isso tornaria a delação nula. O MP questionou a delegada a esse respeito e ela relatou que foram realizadas diversas colaborações, entre seis e sete, e que diferentes advogados acompanharam Douglas Romano.
— À época, no primeiro termo de colaboração premiada, foi um fato que aconteceu à noite. Tínhamos uma policial que tinha um parente advogado e chamamos ele para a formalização do ato. Foram algumas colaborações e precisávamos de advogado. Tinha uma conhecida, que trabalhava na OAB, e pedi para ela me indicar alguém. Em outra oportunidade, tivemos outra colaboração, e ela disse que podia indicar um colega. Mas ele (delator) sempre foi esclarecido e entrou por livre e espontânea vontade — disse.
Sobre a participação de José Dalvani no crime, o relator afirmava, segundo Luciana Smith, que no período em que atuou como gerente se dirigia diretamente a ele, indicando que ele comandava o tráfico na região. Às 12h36min o MP encerrou os questionamentos à delegada. Foi determinado intervalo para almoço até 13h40min, quando as defesas passarão a questionar Luciana.
Buscas pelo corpo
Sobre o corpo de Laisa não ter sido encontrado, a delegada afirmou que diversas vezes buscas foram feitas nos locais onde o delator afirmou que tinham sido enterrados os corpos de vítimas da facção. Uma restroescavadeira chegou a ser usada na área onde estaria um cemitério clandestino.
— Foram encontrados corpos lá? — questionou o promotor Vaccaro.
— Sim, inclusive em pontos onde ele (delator) indicava que havia corpos. Foram encontrados corpos, ossadas — disse a delegada, que narrou ainda outros crimes descobertos com a delação.
O depoimento da delegada foi retomado às 14h, com os questionamentos das defesas. Severo pediu que o cliente sentasse ao lado dele durante as perguntas. O criminalista iniciou as indagações sobre a delação, questionando a indicação de advogado por parte da polícia, e citou a lei 12.850, no trecho que cita que "os termos de recebimento de proposta de colaboração e de confidencialidade serão elaborados pelo celebrante e assinados por ele, pelo colaborador e pelo advogado ou defensor público com poderes específicos". Isso gerou um pedido de parte do Ministério Público, para explicar que o dispositivo citado pelo advogado foi acrescentado na legislação em 2019, pela lei 13.964, ou seja, após a delação.
A situação levou a um debate mais acalorado entre as partes.
— Não tenho problema nenhum em abandonar plenário. Eu pego minha mala de garupa e me mando — disse Severo, alegando que estava sendo impedido de trabalhar.
Neste momento, o criminalista se referiu ao cliente como inocente, o que gerou reações de familiares da vítima. Com isso, o juiz repreendeu a plateia, informando que qualquer manifestação levaria à retirada do plenário.
— Não haverá aviso prévio — avisou o magistrado.
Logo depois, a defesa de José Dalvani fez questionamentos sobre o fato de o corpo de Laisa nunca ter sido encontrado.
— Ele dá riqueza de detalhes na ação criminosa, mas na hora de indicar o corpo para trazer materialidade ele não diz onde está. É um crime sem corpo. Ele conta uma história e não mostra onde está. Não aponta o principal — disse Severo sobre o delator.
A delegada respondeu que o local possui área extensa e que isso impedia a localização exata do ponto onde a garota foi enterrada. Severo questionou ainda sobre outra pessoa, que teria feito ameaças à Laisa, indagando se havia sido investigado no caso. O juiz interrompeu as perguntas da defesa solicitando que fossem feitas de forma objetiva.
Após depoimento da delegada, que encerrou às 14h30min, a defesa de José Dalvani desistiu da terceira testemunha, que seria ouvida.
Em vídeo, delator confirma decapitação
Após o depoimento da delegada, o Ministério Público pediu para exibir um vídeo, com um interrogatório do delator Douglas Romano. Na gravação, ele afirma que quando integrava a facção recebia ordens das lideranças, entre eles José Dalvani, para fazer ataques diários a tiros em territórios dominados por grupos rivais.
— Tinha que mandar o áudio do rádio da polícia — disse, sobre a necessidade de comprovar que tinha cometido o ataque.
Sobre o caso de Laisa, Romano contou que foi para uma casa e enviou um táxi para levar a adolescente até o local. O telefone dela tocou e ele e outros membros do grupo perceberam que ela mantinha contato com um integrante de uma facção rival. Eles teriam, então, mantido a menina em cárcere até conseguirem contato por telefone com José Dalvani.
— A Laisa passou a noite toda lá. De manhã, quando o Buiu (que seria gerente do tráfico) conseguiu falar com o Minhoca, o Buiu falou que ela tinha 16 anos. O Minhoca disse "mata ela" — contou.
Segundo o delator, ao saber que seria morta Laisa contou que tinha apenas 12 anos. O delator, que também era réu no processo, disse que ao saber da idade dela se recusou a matá-la, mas que, ainda assim, colaborou com o crime. A menina foi conduzida em um veículo até o Jardim Protásio Alves, para um cemitério clandestino. No local, segundo Romano, os criminosos cavaram uma cova, fizeram a garota entrar nela e então a decapitaram.
Nesse momento em que o delator narrou o crime brutal, familiares de Laisa se abraçaram e choraram, de cabeça baixa. No vídeo, Romano relata mais crimes praticados pela facção, envolvendo tráfico de drogas e outros homicídios.
Defesas negam autoria
As defesas dos réus deverão sustentar em plenário que o delator mentiu e que não há provas do envolvimento deles nos crimes. Pouco antes do início do júri, o advogado Jean Severo se manifestou sobre o caso e voltou a alegar que o réu é inocente:
— O José Dalvani não tem qualquer relação com esse fato. Essa delação premiada é nula e vamos demonstrar isso em plenário.
Ainda deve ser ouvida mais uma testemunha e interrogados os réus, antes de ser dado início aos debates entre acusação e defesa. A previsão é de que o júri se estenda até o fim da noite ou início da madrugada desta quinta-feira (8).
Contrapontos
O que diz a defesa de José Dalvani Nunes Rodrigues
O advogado Jean Severo, um dos responsáveis pela defesa do réu, informou que pretende comprovar a inocência do cliente no plenário. O criminalista sustenta a nulidade da delação premiada e deve apresentar isso nos argumentos da defesa. Afirma que o advogado escolhido para acompanhar a delação teria sido indicado pela própria polícia, enquanto deveria ter sido um profissional de confiança do colaborador.
— Nós temos convicção da inocência do José Dalvani. Essa delação premiada é nula. Vamos mostrar isso ao júri com muita tranquilidade. Temos convicção de que o José Dalvani vai sair absolvido — afirma o advogado.
Sobre a delação, a Polícia Civil afirma que foi realizada dentro da legalidade e que, por isso, foi homologada pelo Judiciário.
O que diz a defesa de Douglas de Sá Gomes
Os advogados Rodolfo Francisquinho e Claudecir Mariano, responsáveis pela defesa de Gomes, enviaram nota a GZH na qual dizem que "os fatos narrados na denúncia não são verdadeiros. DOUGLAS DE SÁ GOMES, é inocente". O texto acrescenta que "já está superado nos autos de que não há provas a respeito da autoria de nenhum dos Acusados. A defesa confia nos jurados e o que se espera é a absolvição de Douglas".
O que diz a defesa de Gustavo da Luz Marques
Segundo o advogado Agenor Cruz Neto, um dos responsáveis por defender de Marques, "a defesa espera que o conselho de sentença reconheça a negativa de autoria e absolva o acusado tendo em vista a evidente falta provas".