A Lei de Abuso de Autoridade (13.869/19) entrou em vigor no dia 3 e já começa a impactar no acesso a informações à população em todo o país. A norma prevê punições a servidores públicos que expuserem suspeitos de forma abusiva ou mesmo que repassarem dados que possam ser consideradas desrespeitosos — e as mudanças têm gerado restrições na comunicação por parte dos órgãos de segurança. Em adaptação à Lei de Abuso, policiais passaram a diminuir o repasse de informações.
A Polícia Civil do RS decidiu, por exemplo, que "não serão mais divulgadas aos órgãos de comunicação fotos de suspeitos presos. A orientação é de que não sejam compartilhados ou divulgados vídeos e fotos de presos/investigados/indiciado/conduzidos, de qualquer espécie, ainda que estejam de costas ou que o rosto tenha o efeito desfoque". Policiais militares também foram orientados a não publicar mais nas suas redes sociais imagens pessoais de abordagens de presos. Os suspeitos não devem ser expostos.
Nada impede que jornalistas fotografem ou filmem a condução de presos, investigados e indiciados nos locais de busca ou prisão. Continuaremos, inclusive, a informar nossas futuras ações, porque não queremos que nossas operações sejam invisíveis.
DELEGADA NADINE ANFLOR
Chefe da Polícia Civil
A lei define cerca de 30 situações que configuram abuso e prevê penas de dois a quatro anos de prisão para agentes públicos que expuserem suspeitos a situações vergonhosas (leia mais abaixo). A legislação não é consenso entre juristas, além de ser questionada no Supremo Tribunal Federal por representantes de policiais e promotores públicos. Muitos advogados, porém, comemoram as novas normas. Lembram que nem sempre o sujeito exposto numa operação policial é um criminoso e, quando exposto, sua imagem dificilmente se recupera.
Nos bastidores, policiais e promotores exprimem grande desconforto diante da nova lei. Acreditam que a norma teria sido gestada por políticos interessados em proteger colegas suspeitos de corrupção. Grupos de policiais até criaram postagem (ao lado), espalhada pelas redes sociais, na qual aparece um fuzil e drogas apreendidos, com os seguintes dizeres:
"Em cumprimento à lei 13.869/19 informo que... alguma polícia judiciária, com apoio de alguma instituição militar, deu cumprimento a uma ordem judicial, em algum lugar, e prendeu algumas pessoas, na manhã de hoje..."
Na realidade, desde que a lei passou a vigorar, as fotos de presos pela Polícia Civil foram substituídas por uma tela fixa, onde se lê, em letras brancas (abaixo): "Prisão efetivada pela Polícia Civil".
O objetivo principal, confirma a chefe de Polícia, delegada Nadine Anflor, é evitar disseminação de situações vexatórias aos suspeitos nas redes sociais.
— Nada impede, no entanto, que jornalistas fotografem ou filmem a condução de presos, investigados e indiciados nos locais de busca ou prisão. Continuaremos, inclusive, a informar nossas futuras ações, porque não queremos que nossas operações sejam invisíveis. Confiamos que haverá bom senso ao expor os conduzidos — resume Nadine.
Critérios
A delegada também diz que oficialmente a Polícia Civil, já há algum tempo, evita fornecer nomes de pessoas presas e/ou investigadas. Já após indiciamento do suspeito, fica a critério de cada delegado dar nomes ou não. Por outro lado, essas informações podem ser acessadas de outras formas e veiculadas, desde que o divulgador se responsabilize.
A chefe do Estado-Maior da BM, coronel Cristine Rasbold, diz que a regra vale mesmo é para o servidor, cabendo aos demais cidadãos lidarem do seu jeito com o assunto.
— A comunidade e a mídia podem tentar identificar quem foi preso, não interferiremos nisso, mas orientamos os policiais a não expô-los.
E o que acontece se alguém se sentir prejudicado com divulgação de sua imagem ou nome? A orientação, na BM e na Polícia Civil, é de que procurem as corregedorias desses dois órgãos e revelem qual servidor que os expôs.
Na Federal
Na Polícia Federal, a Lei do Abuso de Autoridade pouco muda. Um delegado com cargo diretivo explica:
— Temos por hábito evitar fotos constrangedoras e não divulgar nomes. Isso já é feito há mais de uma década. Mas não impedimos que as pessoas façam fotos e consigam os nomes, por meios próprios, desde que em local público — resume o policial.
O delegado da PF ressalta que foi reforçada recentemente recomendação para evitar exibicionismo por parte de policiais. Seja para não colocar em risco ele e seus colegas — com fotos — ou para impedir que ele use de sua profissão para tentar se promover de alguma forma, em nível pessoal.
A comunidade e a mídia podem tentar identificar quem foi preso, não interferiremos nisso, mas orientamos os policiais a não expô-los.
CORONEL CRISTINE RASBOLD
Chefe do Estado-Maior da BM
O Ministério Público informa que já é hábito não revelar dados sobre pessoas investigadas. Os nomes costumam ser divulgados assim que elas são denunciadas — ou seja, quando se estabelece presunção de culpa.
No Judiciário, a orientação é de que sejam divulgados atos oficiais, ou seja, que fazem parte do processo, desde que não estejam sob segredo de Justiça.
Algumas autoridades, na dúvida, barraram acesso a informações. Na Serra, foi vetada a divulgação de boletins de ocorrências criminais, algo que era rotineiro antes da nova Lei de Abuso. Em reunião, isso foi sacramentado pelos 15 delegados da região. Alguns policiais se dispõem a relatar os fatos ocorridos, mas decidiram evitar nomes.
Alguns agentes apostam que a lei será derrubada com base numa Ação de Inconstitucionalidade. Outros dizem que, com o tempo, as regras cairão em desuso, pela sensação de que ela serve mais para proteger criminosos do que para fazer Justiça.
Nova legislação é vista como represália à Lava-Jato
Autoridades ouvidas por GaúchaZH são unânimes em ver na Lei de Abuso represália de políticos aos atos anticorrupção da Operação Lava-Jato. Aprovada pelo Congresso em setembro, a nova lei tramitou com rapidez após a divulgação, pela imprensa, de mensagens que revelavam combinações de estratégias entre procuradores da República e o então juiz Sergio Moro. Foram menos de três meses entre a revelação das primeiras conversas e a aprovação da legislação.
Entre os pontos abordados pela nova lei e que torpedeiam estratégias usadas pela Lava-Jato estão pelo menos três situações:
- condução coercitiva: agora, o sujeito a ser conduzido tem de ser intimado antes a depor.
- revelação de diálogos dos suspeitos: será punido quem divulgar gravação sem relação com a prova.
- prisões preventivas: a lei agora pune quem "deixar de relaxar a prisão ou substituir a prisão preventiva por medida cautelar diversa, quando manifestamente cabível".
RESUMO DA LEI 13.869/19
O que passou a ser proibido, com relação a divulgação de imagens ou informações dos suspeitos de crimes:
Crimes punidos com detenção de seis meses a dois anos
- Atribuir culpa publicamente antes de formalizar uma acusação.
Crimes punidos com detenção de um a quatro anos
- Constranger um preso a se exibir para a curiosidade pública.
- Constranger um preso a se submeter a situação vexatória.
- Divulgar material gravado que não tenha relação com a investigação que o produziu, expondo a intimidade e/ou ferindo a honra do investigado.
Detalhe: não é necessário que a vítima acuse o agente público pelo fato. Os crimes são de ação pública incondicionada, ou seja, é dever do estado investigar. Isso é feito por corregedores das corporações ou pelo Ministério Público.