Num janeiro frio e já distante, comecei a pós-graduação em cirurgia torácica na famosa Clinica Mayo, rodeado de medo. Logo na chegada, o primeiro desconforto: há uma enorme distância entre o inglês que presumimos falar e o que de fato falamos.
Uma semana depois, por problemas com o entendimento claudicante, fiz uma bobagem qualquer e, tendo percebido a tempo, expliquei ao meu chefe e colegas residentes que tudo se devera a um mal-entendido por conta do idioma, mas que já estava resolvido.
Apesar das explicações, do meu ponto de vista suficientes, já que não houvera nenhuma catástrofe, eles seguiam me olhando com uma cara muito estranha, como se eu fosse um extraterrestre.
Demorei algum tempo para perceber que a admiração que provocara não se devia ao erro cometido - até porque errar faz parte do cotidiano de quem está em treinamento -, mas, sim, ao fato - para eles inusitado - de que estavam diante de uma criatura que se alongava em explicações. E não podia ser implicância, até porque eles não tinham a menor ideia de o quanto a minha amada Vacaria, tão grande no meu coração, é pequenina aos olhos do mundo.
Acontece que os americanos definitivamente não estão habituados com explicações e, mais do que isso, sentem-se diminuídos quando são obrigados a se justificar, e pasmos quando têm de ouvir.
Mas aqui, não. Somos complacentes e concessivos. Ouvimos explicações absurdas com respeitosa tolerância, talvez inconscientemente pleiteando igual generosidade quando tocar a nós a justificativa fajuta. E se prestarmos atenção ao que se diz, percebe-se que quase nunca há um pedido explícito de desculpas. Nem o silêncio respeitoso de quem assume o erro. Parece que ter o que dizer é suficiente, mesmo que, na maioria das vezes, seja óbvio que não passa de reles embromação.
Essa é uma atitude nossa, muito latina, com um enorme tempo perdido entre dar e ouvir explicações. Aprendi com os americanos que a necessidade de explicações, numa atividade de grupo, significa, antes de mais nada, que alguém deixou de cumprir a sua parte. Bem fácil perceber que a entrega obstinada ao cumprimento das tarefas individuais é uma marca indelével da civilização anglo-saxônica. Podemos até não gostar de tudo o que eles fazem, mas precisamos aplaudir o esforço que eles despendem para perseguir a perfeição. Mas ainda havia mais o que aprender.
A oportunidade de trabalhar com o professor Spencer Payne, um dos maiores cirurgiões torácicos americanos do século 20, foi muito mais do que o simples convívio com uma técnica apurada e uma cabeça luminosa. Foi também o privilégio de ficar exposto a lições inesquecíveis. Lembro o dia em que ele, com uma agenda de oito toracotomias em sequência, recebeu a notícia de que um amigo fraterno, apaixonado por canoagem, tinha morrido afogado nas cabeceiras do Mississipi. Depois de saber pela secretária que o próximo voo para a cidade onde o amigo seria velado só sairia às 18h, ele seguiu operando com irretocável maestria. Nos intervalos, ia ao vestiário e chorava um pouco, até que o interfone o chamasse para a próxima operação. No meio da tarde, impressionado com seu sofrimento, ofereci-me para operar o paciente seguinte, e ele me disse: "Obrigado, meu doutor, mas acho que não devo parar. Porque, se cumprir toda a minha agenda, hoje à noite eu só terei a morte do meu amigo querido para lamentar".
Se o assunto era responsabilidade, eu tinha recebido a lição mais definitiva, e começado a entender de que material são feitas as pessoas especiais.