Entre as milhares de vítimas da enchente no Rio Grande do Sul, uma moradora de São Leopoldo foi especialmente atingida. Paciente de uma doença de origem genética que enfraquece o coração, teve a casa inundada e viu sua saúde piorar após dar à luz um bebê prematuro. Sem condições de realizar um transplante ou de viajar por conta da gravidade do caso e do impacto da cheia sobre o Estado, recebeu no mês de maio o implante de uma bomba cardíaca ainda rara no Brasil graças a um projeto filantrópico. Quatro meses depois, Fernanda Assmann, 32 anos, conseguiu voltar para casa com a família e agora prepara o retorno ao trabalho.
Fernanda já vivia com um quadro de insuficiência cardíaca provocado por fatores hereditários. A miocardiopatia estava controlada pelo uso de medicamentos, mas se complicou quando uma gravidez sobrecarregou seu organismo. A gestante, de 1m70cm e 120 quilos, passou a sentir cansaço frequente e problemas digestivos. Vomitava quase tudo o que comia. Perdeu 45 quilos em poucos meses e, debilitada, precisou se submeter a uma cesárea em abril a fim de preservar a vida dela e do pequeno Henrique, que veio ao mundo na trigésima semana de gestação com apenas 38 centímetros e 1,4 quilo.
— Meu caso se agravou muito rapidamente, e isso tudo em meio à enchente — recorda Fernanda.
Com o nível de anticorpos elevado devido à gravidez, a equipe médica avaliou que não seria recomendável tentar um transplante cardíaco pelo risco redobrado de rejeição. Além disso, o impacto da inundação sobre a infraestrutura derrubou a oferta de órgãos no Estado. A solução seria tentar o implante de um dispositivo criado pela empresa americana Abbott que auxilia o coração a bater.
O aparelho, conhecido como HeartMate 3, é disponibilizado no Brasil por meio de um projeto de filantropia chamado Coração Novo, desenvolvido pelo hospital paulista Sírio-Libanês em parceria com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS). Geralmente, o paciente vai até São Paulo fazer a complexa cirurgia. Mas, por conta das dificuldades provocadas pela cheia, como o fechamento do Aeroporto Salgado Filho, e da situação delicada de Fernanda, os paulistas viajaram até o Hospital de Clínicas para implantar o mecanismo — que é acoplado ao coração e amplia a capacidade de bombeamento do órgão. Por meio de um fio que sai pelo abdômen do usuário, é ligado a um aparelho externo de monitoramento e a uma bateria que precisa estar sempre carregada (veja imagem ilustrativa abaixo). O custo de uma unidade, ainda não contemplado via SUS, é de cerca de R$ 750 mil.
— É preciso adotar uma nova rotina, mudar de curativo diariamente, não deixar molhar, colocar um plástico para tomar banho. E não pode deixar acabar a bateria, que tem uma autonomia de até umas 15 horas. Quando eu durmo, para não correr risco de ficar sem bateria durante o sono, eu durmo ligada na luz, como digo brincando — conta Fernanda que, de fato, precisa ficar acoplada à rede de energia durante a noite através do equipamento externo.
Apesar da necessidade de adaptações, Fernanda comemora a nova vida que o aparelho lhe trouxe. Sem isso, precisaria permanecer no hospital e sob maiores riscos de saúde. Agora, vai ao Clínicas (referência no Estado para pacientes que incorporam essa tecnologia) apenas para acompanhamento.
— Isso permite que eu continue acompanhando o meu filho, que eu veja ele crescer. Tenho muita gratidão porque me possibilita ficar próxima das pessoas que eu amo. Salvou a minha vida — conta a analista acadêmica da Unisinos.
A enchente inundou a casa onde vivia com o marido e os pais no bairro Rio dos Sinos, levou eletrodomésticos e todo o enxoval do bebê. Em setembro, depois de passarem meses ocupando um apartamento menor em outro bairro, puderam voltar para a antiga moradia. O próximo plano é retomar a atividade presencial na Unisinos.
— Estou terminando a licença-maternidade e mais um saldo de férias. Vou voltar na metade de outubro — garante Fernanda.
Enquanto isso, segue acompanhando o progresso diário do filho, agora com cinco meses.
— Ele é bem esfomeado, adora mamar. Já fica sentado e reconhece quando falamos com ele — conta a mãe, que procura passar ao menino a paixão pelo Inter por meio de roupas com o escudo do clube.
Fernanda diz que ainda espera realizar um transplante cardíaco, mas antes disso é preciso que os exames indiquem um menor risco de rejeição.
EUA fazem 2,5 mil implantes ao ano
A cardiologista Livia Goldraich, coordenadora técnica dos Programas de Transplante Cardíaco e Suporte Circulatório Mecânico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, revela que nove pessoas já receberam o dispositivo no Rio Grande do Sul, entre as quais seis permanecem utilizando o mecanismo.
— Não é uma tecnologia experimental, mas algo já consagrado, com quase 20 anos de uso, que segue evoluindo. No momento, está na terceira geração desses aparelhos — conta Livia.
Esse tipo de intervenção ainda é rara no país, com algo em torno de 70 pacientes beneficiados, em razão do custo elevado e de ainda não fazer parte dos tratamentos garantidos pelo SUS. Segundo a cardiologista, no Estados Unidos já são realizados cerca de 2,5 mil implantes ao ano, e outros 500 na Europa.
No Brasil, o acesso depende basicamente do projeto bancado pelo Sírio-Libanês e de eventuais judicializações envolvendo planos de saúde. Livia destaca que, há poucas semanas, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) emitiu um parecer favorável à inclusão do HeartMate3 nos tratamentos previstos pelo SUS:
— Ainda precisa passar por outras instâncias, o que pode demorar meses ou até mais de um ano, mas nos deixa muito esperançosos.
Segundo a especialista, uma outra multinacional que fabricava um produto semelhante decidiu interromper a produção, e outros similares não contam com o mesmo retrospecto de desempenho.
— Pode parecer um tratamento agressivo por ter de carregar parte do equipamento por fora (do corpo). Mas é destinado a pessoas que estão muito doentes, sem muita perspectiva de sobrevida, vivendo em um hospital, e assim podem voltar para casa e até trabalhar — complementa Livia.