Se um samba-enredo pudesse contar o sentimento vivido pelos integrantes das escolas de samba de Porto Alegre na atualidade, decepção e frustração, provavelmente, seriam as palavras mais repetidas. Desde o cancelamento do Carnaval de Porto Alegre no Porto Seco, anunciado em 21 de fevereiro pela Liga Independente das Escolas de Samba de Porto Alegre (Liespa) devido à falta de condições de fazer um evento competitivo, a melancolia domina quem tem no Carnaval um ideal de vida. A reportagem conversou com carnavalescos que tentam trabalhar a própria mágoa e manter a cabeça erguida, apesar das dificuldades.
Neste ano, a disputa no Porto Seco foi substituída por uma apresentação no dia 24 de março, na Avenida Edvaldo Pereira Paiva. O desfile começa às 19h com as escolas da Série Prata, que terão 30 minutos de desfile, seguidas pelas da Série Ouro, com 45 minutos de apresentação cada. O desfile da Série Ouro começa às 23h45min, com a Embaixadores do Ritmo, seguida por Acadêmicos de Gravataí, Imperatriz Dona Leopoldina, Bambas da Orgia, Estado Maior da Restinga e Imperadores do Samba. As Escolas Império da Zona Norte e Vila do IAPI optaram por não participar do desfile.
Os compositores Arilson Trindade, 47 anos, Michéle da Rosa Volkweis, 38 anos, e Flavio Ramires, 25 anos, dividem frustrações parecidas. Arilson compõe sambas-enredo há 20 anos. Seu nome está entre o dos autores dos sambas das duas mais recentes campeãs do Carnaval de Porto Alegre: Imperatriz Dona Leopoldina, em 2016, e Imperadores do Samba, em 2017. Neste ano, trabalha para Vila Isabel já pensando no desfile do ano que vem, como se 2018 nunca tivesse existido.
Michéle e Flavio são compositores jovens e venceram pela primeira vez o festival que escolhe o samba-enredo de suas escolas. Ela no Bambas da Orgia, com o samba que fala sobre o centenário de Nelson Mandela, e ele na Imperadores do Samba, tratando sobre africanidade. Ambos dividiram a alegria de terem emplacado o samba, agora atropelada pela frustração de não vê-lo tocar na Avenida.
Michéle participou de quatro disputas de sambas até sair vitoriosa. Ao saber que não haveria desfile justamente neste ano, ficou em choque e se afastou. Sente como se tivesse ganhado um presente que lhe foi arrancado.
— Não é só uma composição, é um sentimento que tu colocas na letra. É nossa forma de expressar o amor pela escola. Me afastei para me acalmar. Toda a vez que canto meu samba, eu choro. Tu pensas em tudo que poderia acontecer e não vai. Como eu queria estar do lado do carro de som cantando meu samba! Me sinto fracassada, o fracasso não é meu, mas é assim que me sinto — desabafa Michéle.
Sem ânimo
Ritmista desde os oito anos, Flavio sonhava ainda criança em ter um samba seu cantado na Avenida. Depois de dois anos de tentativas e de três festivais, conseguiu muito antes do que imaginava:
— O que eterniza um samba é o desfile. Toda minha família estava se mobilizando para participar, meus pais diziam para todo mundo: "vamos desfilar com o samba do meu filho".
Integrantes de duas escolas historicamente rivais na disputa pelo título, Michéle e Flavio não veem sentido em ir até a apresentação do dia 24.
— Não sei se eu quero fazer isso comigo mesma — afirma Michéle.
— Qual ânimo que terei para estar lá? — questiona Flavio.
Também integrante da diretoria da Associação dos Compositores de Músicas de Carnaval do Rio Grande do Sul (Compor-RS), Arilson acredita que o cancelamento do Carnaval causou uma mágoa entre os integrantes das escolas com todos que permitiram que o evento chegasse a este ponto.
— Tem Carnaval em Cruz Alta, Uruguaiana e Guaíba e não tem aqui. Isso machuca e abre um precedente perigoso de que não se tenha mais a festa. O grande medo é o poder público acreditar que Porto Alegre não precisa mais de Carnaval.
Decepção tirou bateria do compasso
O 27° Carnaval como mestre de bateria de Álvaro Francisco Capelão de Oliveira, o Chiquinho da Império da Zona Norte, não terá a mesma batida de todos os outros anos. Habituado a liderar um grupo de 180 ritmistas, Chiquinho está desolado.
— Vou ser sincero, cheguei a chorar quando soube que não teria Carnaval. Fui ritmista minha vida toda. Estou há 38 anos no Carnaval.
Escola que sempre foi a favor da competição no Carnaval, a Império não ensaiou nenhuma vez depois da notícia de que não haveria disputa. Chiquinho já tinha feito nove ensaios com a bateria, tinha construção do samba, harmonia e arranjos com sanfona e forró, já que o samba-enredo da escola trataria das festas juninas.
— É uma grande decepção, desmotiva até os ritmistas a irem nos ensaios. Bate uma tristeza, tem que buscar motivação para ti para depois passar para os outros.
Por amor
Nenhum ritmista da escola recebe para participar da bateria. Fazem por amor à escola. Ainda lidando com a própria decepção, Chiquinho se esforça para sonhar com um futuro promissor, em ver o complexo do Porto Seco todo pronto e as pessoas dando o seu melhor. Por enquanto, tenta conter a própria dor para fortalecer seu grupo:
— Não tem mais aquela adrenalina para eu dizer: "Vamos gente, que tá na hora de ensaiar". Agora, cada um ainda está lambendo sua ferida.
Fantasias longe dos olhos do público
Pela primeira vez em 33 anos, a estilista Caren Nurimar Acosta, 41 anos, não fará fantasias para o Carnaval de Porto Alegre. Filha de estilistas carnavalescos e criada junto à festa, aprendeu a bordar e a costurar ainda criança e conhece bem as particularidades da festa na Capital, principalmente no que diz respeito à limitação de recursos, que exige criatividade em dobro ao elaborar fantasias. Neste ano, chegou a fazer orçamentos e relação de materiais necessários para quatro escolas. Porém, nenhuma encomenda se concretizou.
— Meu ateliê é herança de pai e mãe, ele está fazendo 50 anos de Carnaval este ano. Nunca pensei em viver este momento. Eu agradeci por minha mãe não estar mais aqui para ver esse cenário e sofrer o impacto que eu sofri.
Além da profissão, Caren é uma das fundadoras da torcida do Bambas da Orgia, sua escola de coração. Neste ano, não há motivo para torcer.
Por respeito
Já consciente do momento que o Carnaval de Porto Alegre vinha enfrentando, previa que o evento pudesse ser adiado, mas jamais imaginou que seria cancelado:
— Minha casa tem penas e paetês por todo lado. Eu vivo isso, vou a todos os eventos carnavalescos. Quando soube que não teria desfile e competição, imediatamente comecei a chorar. Eu me senti derrotada, como se nada do que eu fiz até aquele momento fosse o bastante.
Atualmente, a estilista trabalha para os Carnavais de Guaíba, Cruz Alta e Alvorada. Convicta, Caren garante que não irá ao desfile do dia 24 por respeito à história da própria família:
— Esse não é o Carnaval que eu faço. Estarei me traindo se for ao desfile. Não é boicote, mas não vou me sentir à vontade, sou muito emotiva, é capaz de eu passar mal.
Diretora de ala dá lição de resistência
Quando soube que não haveria mais desfile competitivo, Flavia Regina Costa, 70 anos, diretora de ala da Imperadores do Samba, já tinha costurado fantasias para duas alas. Entristeceu, mas não parou:
— Demorou a cair a ficha, mas a gente vai levantando a cabeça aos poucos.
Vendo componentes da escola desistirem de desfilar e muita gente desmobilizada, dona Flavia tira forças na sua trajetória de 40 anos de Carnaval para persistir. Tem costurado até 12 horas por dia para deixar tudo pronto a tempo.
— Meu filho pede para eu não exagerar tanto. Tenho problema de coluna, quando começa a cansar, paro e me estico no sofá.
Enquanto costura as peças desenhadas pelo estilista Luciano Maia, lamenta:
— O mais bonito, que são os carros alegóricos, neste ano não vamos ter.
Jogo de cintura
Dona Flavia é conhecida pelo jogo de cintura ao lidar com os componentes da escola e a facilidade de mobilização. Este ano, porém, nem mesmo sua simpatia tem sido suficiente para segurar os carnavalescos:
— Hoje recebi dois telefonemas de pessoas dizendo que não sabiam se iriam desfilar. Não posso obrigar a pessoa a estar lá. É triste.
Ver o Carnaval mais frágil a cada ano amedronta dona Flavia para o que ainda estar por vir. Ela admite que, a curto prazo, não é possível ter expectativa de nada melhor:
— É uma resistência para não deixar morrer. Se não fizermos isso, ano que vem não vai ter nada. Tem que ter coragem e gostar muito. Eu ainda sou muito otimista. Ou eu entro de cabeça ou nem entro.