Nos últimos anos, a herança colonial ibérica se tornou chave para explicar as mazelas nacionais, principalmente a corrupção. Jeitinho, confusão entre público e privado e superioridade das relações pessoais sobre a ordem racional e universal aparecem na imprensa, nas redes sociais e na academia como leituras certeiras e definitivas da alma brasileira. Nada disso convence o sociólogo Jessé Souza, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Em seu mais recente livro, A Tolice da Inteligência Brasileira, Souza, que é doutor e livre-docente em Sociologia por universidades alemãs, afirma que esse discurso, além de ferir a autoestima da população, serve como cortina ideológica para esconder um problema mais grave: a desigualdade social. Na opinião do sociólogo, a classe média tradicional, que idealiza os países desenvolvidos e se considera a guardiã da moralidade da nação, é incapaz de enxergar um sistema no qual exerce dois papéis: o de explorada pelos "endinheirados" e o de exploradora dos mais pobres e excluídos.
Na elaboração do argumento, Souza desconstrói as teses de três grandes intérpretes brasileiros, Gilberto Freyre, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. O autor aponta que as ideias do trio sustentam, com verniz científico, as noções de que, no Brasil, o Estado é corrupto, e o mercado, virtuoso. No mundo político, argumenta Souza, esses princípios têm servido de arma dos mais ricos e dos liberais contra os governos Getúlio Vargas, João Goulart, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, voltados, em sua opinião, à redistribuição da riqueza.
Desde o lançamento do livro, Souza tem sido atacado pelo caráter governista da obra. O fato de ter assumido um órgão estatal em abril do ano passado alimenta as investidas. É justo lembrar que a preocupação do sociólogo com a tese do patrimonialismo é anterior aos governos petistas. Em A Modernização Seletiva, de 2000, ele já criticava o trabalho de Faoro e Sérgio Buarque. Agora, está muito mais incisivo. Leia a entrevista concedida por e-mail a ZH.
Quem é Jessé Souza
Nascido em Natal (RN), Jessé Souza, 55 anos, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), fez pós-doutorado em filosofia e psicanálise na New School for Social Research, de Nova York, e livre-docência em sociologia na Universidade de Flensburg (Alemanha). É também autor de A Modernização Seletiva: Uma Reinterpretação do Dilema Brasileiro (2000), A Ralé Brasileira: Quem é e Como Vive (2009) e Os Batalhadores Brasileiros: Nova Classe Média ou Nova Classe Trabalhadora? (2010). Desde o ano passado, preside o Ipea.
Seu livro faz uma dura crítica a Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro. Não há nada desses clássicos que seja válido hoje?
Freyre é um grande historiador, talvez o maior do Brasil, e seus livros podem ser lidos para além de sua própria interpretação teórica. Não é preciso comprar a avaliação do autor sobre si mesmo. Também existem passagens brilhantes em Faoro e em Buarque. O problema é que eles imaginam um "conto de fadas para adultos" para explicar o Brasil, um mito nacional. Em Freyre, este mito ainda é positivo para produzir solidariedade nacional, enquanto em Faoro e Buarque trata-se do típico complexo de vira-latas. De qualquer forma, um mito, que não precisa ser nem é verdadeiro e serve a propósitos políticos, é péssimo para fundamentar uma ciência. Mas foi o que fizemos. É isto que entrou como uma espécie de segunda pele em toda avaliação que os brasileiros fazem de si mesmos. A gente nem reflete sobre isso. Foi naturalizado. E o fizemos engolindo todo o racismo não explicitado que está embutido na oposição entre as noções de espírito, moral e cognitivamente superior, e de corpo (emoção, afeto e sexo), moralmente inferior e com tendência ao logro e à corrupção. É incrível como as pessoas puderam comprar tamanha imagem depreciativa a respeito de si mesmas. Esse racismo contra si mesmo foi obra de um liberalismo _ do qual Buarque e Faoro foram pioneiros e fundadores na versão moderna do século 20 _ que endeusava os EUA como paraíso na terra. Não vejo vantagem alguma continuarmos com isso. Temos é de criticar e fazer melhor.
Por que a tese do patrimonialismo é um "conto de fadas para adultos"? Quando escreveram seus trabalhos, Freyre, Sérgio Buarque e Faoro queriam iludir o brasileiro?
É um conto de fadas porque é falso de fio a pavio. A tese do patrimonialismo diz que o Estado é apropriado privadamente por uma elite de Estado, daí as críticas ao inchaço do Estado e ao aparelhamento político. Diz-se que o Estado é apropriado por dentro para tornar invisível que é apropriado por fora, por interesses de mercado. A tese do patrimonialismo brasileiro serve para iludir o povo acerca de quem o está explorando. Se todo governo em todo lugar é apropriado privadamente, o problema fundamental é se é apropriado por poucos ou se o é pela maioria. Entre nós, são alguns milhares de endinheirados que se apropriam tanto do Estado quanto dos mecanismos de mercado. Essa elite não está no Estado. É essa a verdadeira elite que construiu um mercado superfaturado com bens e serviços supercaros e muito ruins - que a privatização só piorou - e que explora a classe média todo dia com o superlucro e o superjuro. É essa elite que não paga imposto sobre a riqueza - deixando a conta para a classe média e os pobres -, já que compra, via financiamento privado de eleições, parte expressiva do parlamento para manter seus interesses representados dentro do Estado e nunca permitir leis impondo imposto sobre riqueza e patrimônio. É essa elite que, finalmente, controla a mídia que produz e distorce a informação de acordo com os interesses desse grupo, perfazendo assim todos os poderes que verdadeiramente importam em uma sociedade moderna. E ainda diz que o culpado de tudo de ruim é o Estado, que manda em tudo para não assumir a responsabilidade por nada. É ou não é um perfeito conto de fadas para transformar adultos inteligentes em tolos? Já a segunda parte da pergunta não tem importância aqui. Não estamos julgando pessoas e sim obras que estão aí para serem melhoradas e criticadas. Os autores podem não ter intencionado iludir os brasileiros, mas o trabalho deles se presta maravilhosamente a isso.
Para combater a hipótese de o Brasil reproduzir uma herança patrimonial ibérica, o senhor diz que Portugal não teve escravidão como o Brasil. Que diferença a escravidão provocou aqui?
A escravidão é o nosso DNA. É quem somos por influência de instituições como família, produção econômica e política. Tamanho desprezo e abandono dos mais pobres não podem ser explicados de outro modo. A grande herança da escravidão é a aceitação como natural do abandono de pelo menos 30% da população sem condições de aprendizado real na escola e mais tarde sem chances no mercado de trabalho competitivo, e que vai ter de vender sua energia muscular em trabalhos domésticos, sujos e pesados. É a classe média, por sua vez explorada pelo 1% mais rico, que explora esses excluídos e lhes rouba o tempo que será investido em mais educação e mais trabalho valorizado. Os excluídos são condenados ao abandono eterno. Toda conversa de patrimonialismo e de demonização do Estado serve, antes de tudo, para deixar essas explorações e lutas de classe na sombra para que possam continuar para sempre.
Para o senhor, a ideologia liberal, ao mesmo tempo que ressalta a tese do jeitinho e critica o nosso suposto patrimonialismo, joga o todo o peso da corrupção nos ombros do Estado, propaga a ideia de um mercado virtuoso e convida a sociedade a se sentir pura e ética como o mercado. O brasileiro é menos ou mais corrupto que outros povos?
O brasileiro definido como inferior, como guiado por emoções e inclinado à corrupção, é puro complexo de vira-latas. Não existe nem sequer o brasileiro em geral, já que cada classe tem tipos muito próprios. Não somos culturalmente piores ou melhores que ninguém. Na dimensão institucional, no entanto, podemos melhorar muito. No caso da corrupção, precisamos de melhor controle da relação entre política e economia para mitigar a compra da política pelo dinheiro. A compra de políticos e de partidos via financiamento privado é uma corrupção que todos vêm, mas que não choca ninguém. Afinal, é feita em proveito dos endinheirados. Nossa tradição de culturalismo vira-lata e de demonização do Estado quando ocupado pela esquerda distorce o tema da corrupção do nível institucional para o nível pessoal. Em vez de se discutir uma reforma política profunda, prefere-se manipular o povo e dizer que só um partido ou só alguns políticos têm culpa no cartório. É aí que temos a corrupção seletiva quando políticos do PSDB são blindados pela imprensa e outros são perseguidos impiedosamente.
Se a corrupção não é um traço cultural, qual sua origem no Brasil?
A mesma origem que tem em todo lugar. Sempre que inexistam mecanismos institucionais efetivos de controle, as pessoas tendem a procurar o próprio benefício à custa dos demais.
Se existe jeitinho brasileiro, ele seria dos ricos, uma vez que o capital social depende antes do capital econômico e do cultural?
O jeitinho é para quem pode. Mas não é só no Brasil. O jeitinho é universal, só não pode ser muito visível. Alguém fala da lavagem de dinheiro de grandes empresas multinacionais em paraísos fiscais? Por que ninguém acaba com os paraísos fiscais? A evasão de rendas e a sonegação fiscal são marcas do capitalismo desregulado, um eufemismo para a "corrupção legal". O ponto principal é a manipulação do público de modo a deslocar a atenção para a corrupção seletiva. Como não existe uma delimitação clara da corrupção, posto que está em todo lugar e faz parte do jogo de ganhar dinheiro, então tem de se criar um bode expiatório. Entre nós, é o Estado demonizado quando ocupado por partidos com interesses em inclusão social e redistribuição de riqueza, como em Getúlio, Jango, Lula e Dilma.
Para o senhor, há preconceito contra o Estado fomentado pelo mercado. Mas são evidentes as falhas nos serviços, como educação e transporte público de má qualidade. Como qualificar o Estado sem cair no discurso do Estado mínimo? A agenda da esquerda para o Estado parece sempre capturada pelos interesses das corporações de servidores. Há também preconceito da esquerda contra ferramentas de gestão.
Não sei se o mercado faz um serviço muito melhor que o Estado. Vamos comparar universidades privadas e públicas? A universidade pública é melhor que a privada porque atende aos filhos da classe média. É o serviço para os pobres que é ruim. Os pobres ou não possuem poder de pressão efetivo ou não sabem como exercê-lo. E quem explora a classe média, por exemplo, com um plano de saúde que é muito caro e comparativamente muito ruim são os endinheirados. Exceto o 1% mais rico, todos ganham com bons serviços públicos que precisam de formas alternativas de financiamento. A taxação da riqueza e do patrimônio, por exemplo, poderia garantir melhores serviços a todos.
Os cartéis formados por grandes empresas para burlar concorrências no metrô de São Paulo e na Petrobras são provas de que a corrupção não é apenas estatal no Brasil?
Sem dúvida, mas essas são apenas as formas mais óbvias.
O senhor afirma que os casos de corrupção são impulsionados por interesses privados, alojados no mercado. Mas, aceitando a tese de que tudo é caixa 2, na outra ponta partidos precisam de recursos para se financiar. Como romper esse ciclo?
Este é o debate correto e inteligente. Ainda que não seja uma panaceia, acho que o financiamento público é importante se acoplado a medidas que tornem mais transparente a relação entre mercado e Estado. É possível mitigar e controlar a corrupção. Mas são sempre medidas de inovação institucional que melhoram a situação e não a absurda divisão infantil da sociedade entre honestos e corruptos. Tua questão é certeira, uma vez que implica em uma estratégia universal e não seletiva de combate à corrupção.
Escândalos de corrupção jogam a sociedade, a imprensa e o sistema político numa armadilha: um debate estéril para definir quais políticos são limpos e quais são corruptos, em uma troca de acusações sem fim. E o senhor faz uma dura crítica à imprensa nesse aspecto. Mas a imprensa não pode jogar esses escândalos para baixo do tapete. Como o país pode usar esses casos para melhorar e reduzi-los?
A verdade é que parte da imprensa joga para baixo do tapete acusações que se referem, por exemplo, a Aécio Neves e Fernando Henrique. Não existe nem sequer a menção ou a menção é menor e atenuada de várias maneiras. A imprensa conservadora é parte vital do jogo de poder que está ganhando. A razão para isso é simples. O Brasil criou desde 1964 uma sociedade exclusiva para 20% da população. Um punhado de endinheirados na ponta e a classe média, que serve a esse grupo no mercado e no Estado. As mudanças recentes foram tímidas, mas desencadearam forte reação. Para o "partido da sociedade para poucos", o grande desafio é evitar o aprofundamento da inclusão social e da redistribuição de recursos. E o único recurso à mão é a corrupção seletiva para demonizar o Estado e partidos de esquerda. Pensemos juntos: como um punhado de poderosos pode legitimar a drenagem constante de recursos de todas as classes para seus bolsos? Tem-se que dizer que se faz algo bom para todos e não apenas visando ao próprio ganho. Tem-se, portanto, que mascarar o interesse egoísta no suposto interesse geral. É aí que entra a corrupção seletiva. Essa turma não tem interesse em um debate sobre reforma política séria. A corrupção tem de continuar dirigida a alvos escolhidos politicamente por interesses de ocasião. Minha tese é de que essa é a única estratégia de permanência no poder de uma classe de endinheirados que compra parte do Congresso e parte da imprensa para continuar a rapina secular da sociedade brasileira.
O livro classifica o mercado como uma forma de corrupção organizada. O capitalismo é por essência corrupto? Qual seria a alternativa?
A manipulação da corrupção vive de sua vagueza e imprecisão. Até bem pouco tempo atrás, corrupto só podia ser o agente público no Brasil. Tamanha seletividade prova que a corrupção é um terreno de luta acerca do que é legítimo e do que é ilegítimo. As definições são fluidas de propósito para que se possa manipular. As agências de risco que maquiaram os balanços de empresas e de países na crise de 2008, a Volkswagen que engana seus clientes ou os bancos que vendem e ganham muito com títulos podres, isso tudo é ou não corrupção? E os bancos no Brasil, com seu lucro excepcional apenas fazendo intermediação financeira, sem nenhum risco e sem dinamizar a produção, isso é negócio ou privilégio? Qual a fronteira entre privilégio e corrupção? Quem define isso? É um bálsamo para o mercado ver que ninguém discute nada disso, mas apenas a corrupção pessoal dos políticos e da política. A atenção do público é desviada da real exploração e espoliação e dramatizada em um terreno em que os endinheirados e seus aliados podem decidir, inclusive, quem fritar e quem salvar. É a dominação perfeita e ainda com boa consciência. A alternativa é uma sociedade participativa e consciente, que não se deixe fazer de tola. Temos de ter debates e opiniões alternativas com direito à fala, senão o que temos é a lei do mais forte e o poder do dinheiro nu e cru.
O senhor chama a classe média de tola por acreditar no discurso liberal de que o mal está no Estado. Mas, se a classe média é o grupo com acesso ao estudo e à informação, como pode ser tão tola? Mais de 10 anos de governos de esquerda não seriam suficientes para mostrar o outro lado para a classe média?
Primeiro, a classe média é muito diversa. Temos a classe média moralista que é a tropa de choque dos endinheirados, posto que o moralismo produz uma satisfação real. O máximo para essa fração de classe é se ver como campeã da moralidade e, portanto, melhor que os outros. É uma satisfação infantil, mas é real. A demonização do Estado serve como uma luva para isso. Mas essa fração da classe média é enganada. Troca uma satisfação fabricada para ela por uma exploração total de seu trabalho e de suas rendas que vão para o bolso dos endinheirados. É uma classe média mais pelo capital econômico e menos pelo capital cultural. Lê e se informa pouco a não ser pela dose diária de veneno midiático. Existem outras frações, como a mais crítica e com mais leitura e reflexão. É minoritária, mas existe. Entre as duas, há uma classe média que se imagina morando em Oslo e desenvolve uma sensibilidade norueguesa se preocupando mais com plantas e caça às baleias do que com a pobreza e a miséria que a cercam. E existem combinações mais complexas entre elas. Esse é um terreno sobre o qual uma pesquisa empírica abrangente nos informaria melhor. Na verdade, pretendo estudar esse ponto em breve.
O PT sempre teve o apoio da classe média, e o Rio Grande do Sul é um exemplo disso. Por que o partido perdeu esse eleitor?
Porque cometeu erros de estratégia e de avaliação. O eleitor típico do PT deveria ser o pobre em ascensão social e não a classe média manipulada pelo tema da corrupção seletiva desde Getúlio. O PT perdeu esse eleitor em ascensão porque não teve discurso para ele. O mote da nova classe média não ajudou em nada a construção de um discurso mais sóbrio e confiável. Seu lugar foi tomado pela religiosidade evangélica. Teria sido possível, eventualmente, até uma aliança com este discurso mais religioso e ter consolidado seu lugar na base da sociedade. Outro erro foi imaginar que a mídia dominante ficaria com quem tivesse o poder de Estado. Erro grave. A mídia, que são empresas e não entidades públicas, fica sempre com quem tem o dinheiro. Por conta disso, as verdadeiras democracias precisam sempre garantir, por meios legais, a controvérsia pública, a opinião alternativa, a informação efetiva do cidadão. Sem isso, não existe democracia real, nem cidadão consciente e autônomo. Senão, ele vai ser formado apenas pelo interesse de quem tem dinheiro, como acontece entre nós.
A ideia de uma nova classe média surgida daqueles que melhoraram de renda nos governos petistas não é avalizada pelo senhor. Por sua tese, não basta aumentar a renda porque o diferencial da classe média tradicional é o capital cultural. Pode explicar essa distinção e indicar como a diferença entre as duas classes pode ser reduzida?
Capital cultural é uma forma de capital tão importante quanto o econômico. Capital cultural não é apenas escola e títulos universitários. É também e principalmente os privilégios invisíveis da socialização familiar. São esses estímulos que criam a capacidade de concentração - que não é natural, mas privilégio de classe -, a disposição ao pensamento abstrato e ao cálculo prospectivo. Quem tem isso é um pequeno vencedor quando chega aos cinco anos na escola. A classe média real tem isso. As classes baixas não têm e chegam como perdedoras à escola e, depois, ao mercado. Isso é privilégio passado de pai para filho e não tem nada a ver com mérito. Os pobres que ascenderam tiveram de lutar contra a ausência de privilégios e, por exemplo, trabalhar e estudar ao mesmo tempo, com 11 ou 12 anos de idade. Classe média é privilégio de nascença. Daí essas classes não serem médias de fato.
O senhor fala em racismo de classe, discorda de que há apenas resíduos da escravidão na sociedade moderna e sustenta que há mecanismos atuais de exclusão. Pode dar exemplos?
O mecanismo da pergunta anterior é, talvez, o mais importante. O capital cultural no Brasil é muito concentrado. Em outros lugares, 70% ou 80% da população tem formação sólida. Aqui, temos 20% ou 30%. E existe uma reação violentíssima para políticas que procurem, timidamente que seja, reverter esse quadro. É isso que é racismo de classe. É achar que existem pessoas apenas para servir e para serem humilhadas.
Um trecho do livro aponta que os ricos não conseguem lidar com a ascensão dos mais pobres e que expressam a "raiva ancestral de uma sociedade escravocrata". O senhor, nesse ponto, não repete o erro das explicações culturalistas?
O vício do culturalismo é imaginar que o comportamento das pessoas pode ser definido por ideias nas nuvens, sem ancoramento institucional. As pessoas se comportam, na realidade, obedecendo a estímulos institucionais de prêmio ou castigo. Pensemos na família, na escola ou no ambiente de trabalho para vermos claramente como isso se dá. A raiva ancestral foi mantida por instituições como trabalho doméstico desqualificado, uma polícia assassina dos pobres com a conivência da classe média, uma Justiça de classe que só condena os pobres e os adversários políticos e uma economia construída sob o monopólio e o privilégio. Tudo isso é continuação institucionalizada de uma sociedade excludente e para poucos.
Politicamente, para onde vão os batalhadores?
A classe trabalhadora precária em ascensão recente é a grande incógnita da política brasileira. Para onde eles se alinharem lá estará o grosso do povo brasileiro. Mas não acredito em alinhamento nacional e geral como ocorre com a classe média. Vai ser uma luta corpo a corpo definida localmente.
O senhor critica a linguagem rebuscada dos intelectuais, fala em ciência colonizada no Brasil e em ausência de debate na academia. Qual o erro da ciência no Brasil e o que deveria mudar?
O erro da ciência social brasileira - obviamente com exceções importantes _ é ser uma imitação rasteira e exterior dos modos universitários europeus e americanos e produzir um contexto avesso à inovação e ao debate crítico. Existem os prédios, as publicações e as instituições de fomento, mas não se tem o principal: o espírito científico que é constante inovação e crítica. Tem-se reverência religiosa aos cânones, o que explica sua continuação até hoje com pouquíssimas críticas. Foi isso que possibilitou uma ciência social dominante servil ao poder do dinheiro. Tenho sempre grande confiança nas novas gerações. Mas podem e devem se construir em terreno novo e mais crítico.
A TOLICE DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA
Jessé Souza
Leya, 256 páginas,
R$ 39, 90 impresso e
R$ 26,99 em e-book