Por Gisela Collischonn, doutora em Linguística, professora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisadora do CNPq e
Luiz Carlos Schwindt, doutor em Linguística, professor do Departamento de Linguística, Filologia e Teoria Literária do Instituto de Letras da UFRGS. Pesquisador do CNPq
Nos últimos tempos, vem se disseminando a tese da proposição de um suposto gênero neutro na língua portuguesa. O tema é complexo, ainda mais quando se ignoram questões caras para a ciência linguística, como a distinção entre gênero social e gênero gramatical, a função da escrita enquanto sistema representacional que se relaciona com a fala e, mais do que tudo isso, a dinamicidade em se tratando de línguas naturais.
Para exemplificar, recuperamos os argumentos apresentados em artigo publicado no caderno PrOA de 4 de outubro, em que a historiadora Ana Maria Colling defende o uso de caracteres, @ ou x, para conferir às palavras um gênero não marcado. A distinção de gênero em português seria sexista e reproduziria preconceitos de gênero ao desqualificar um dos pares. Segundo o artigo, formas como "todos" e "eles" se referem apenas aos homens. Não se reconhece ali, portanto, que o gênero masculino simplesmente coincide com o não marcado, isto é, o gênero que inclui tanto o masculino quanto o feminino. O texto apresenta também algumas soluções para chegar à linguagem sexualmente neutra. Uma delas seria seguir o exemplo do Colégio Pedro II e colocar x no lugar de a e o. Uma solução que só funciona na língua escrita, já que na fala esses x são impronunciáveis. Outra, seria usar de torneios de linguagem, evitando os pronomes flexionados; por exemplo, em vez de dizer "boa tarde a todos", usar "boa tarde a todas as pessoas". O fato de essa expressão substituta empregar "todas" e "as" não é visto como um problema.
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O empenho para "higienizar" a língua de seu suposto preconceito é tanto que "@" é empregado até em sintagmas como "pessoas agredid@s", esquecendo que, no caso de "agredidas", o gênero é determinado por concordância, assim como seria em "indivíduos agredidos". Veja que a questão não é de uma norma externa, ditada por uma gramática prescritiva. Embora os falantes do português nem sempre realizem a concordância, nenhum falante do português diria "pessoas agredidos".
Algumas observações das pesquisas linguísticas podem ajudar a esclarecer essas confusões. Em primeiro lugar, é preciso dizer que nem todas as línguas têm gênero. Por exemplo, o guarani não distingue gênero em substantivos e pronomes. Outras línguas têm gênero, mas não relacionado à categoria semântica "sexo" e sim a categorias como "animado/inanimado", ou "humano/não humano" (por exemplo, as línguas sul-americanas Macuxi e Hixkariana). Frise-se que o próprio termo "gênero" vem do latim "genus" e significava originalmente "tipo", "espécie".
O português, como em geral as línguas indoeuropeias, tem gênero relacionado à categoria semântica "sexo", mas de forma menos generalizada do que se supõe. Gênero é uma categoria linguística inerente aos substantivos, ou seja, todos os substantivos do português têm gênero. O fato é que em apenas um subconjunto desses substantivos - em torno de 13% -, gênero está relacionado a "sexo"; nos demais, é meramente uma categoria formal, classificatória, que determina, entre outras coisas, a concordância. E, sublinhe-se, mesmo naqueles substantivos em que o gênero tem relação com sexo, há associações arbitrárias: o substantivo "mulher", por exemplo, é feminino, mas "mulherão" é masculino.
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A intuição das pessoas, contudo, sobre a associação entre as vogais "a" e o gênero gramatical feminino e a vogal "o" e o gênero gramatical masculino não é fortuita. Em pesquisa sobre o tema em andamento no Instituto de Letras da UFRGS, constatou-se que essa correspondência de fato existe de modo bastante regular, mas que em apenas 6,5% dos substantivos aproximadamente ela está relacionada com sexo - ou seja, pares do tipo menino/menina são minoria em português, apesar de substantivos como bolo, que termina em "o" e é masculino, e casa, que termina em "a" e é feminino, serem bastante comuns. Não nos parece possível, porém, atribuir-se comprometimento ideológico ao gênero dessas palavras. Ainda nesta pesquisa, em relação aos substantivos terminados em "e", observou-se perfeito equilíbrio entre palavras femininas (a ponte) e masculinas (o pote), não cabendo, portanto, qualquer associação entre essa vogal e um suposto gênero neutro na língua.
Uma noção importante para o entendimento completo da questão, e crucial para a descrição de qualquer sistema linguístico, é a de "marcação". Num sistema de dois gêneros, como o do português, em geral, um dos gêneros é não marcado. Isto significa que é usado como forma coringa; por exemplo, nas locuções verbais, usamos a forma masculina do particípio ("ela tinha comprado"). O masculino é também usado como o termo genérico, que engloba os dois gêneros. "Todos" inclui homens e mulheres; "todas" só inclui as mulheres. Em muitas línguas, o gênero não marcado é o masculino, e isso não significa uma relação de poder do homem sobre a mulher. Recentemente, temos observado muitas mulheres usando "obrigado" em vez de "obrigada". A forma é originalmente um adjetivo, por isso, fazia a concordância com o sexo de quem fala. Aos poucos, parece que está se convertendo numa interjeição, contribuindo para a tese de que as línguas naturais caracterizam-se como fenômenos dinâmicos. Como as interjeições não têm gênero, a forma não marcada passa a ser usada pelas mulheres tanto quanto pelos homens. Em outras palavras: o uso de uma língua, apesar de voluntário, está sujeito a princípios mais gerais, que não são tão trivialmente controláveis por seus falantes, como muitos supõem. Propriedades gramaticais como gênero, por exemplo, mudam muito pouco. Esforços externos para mudar uma forma de falar podem ter sucesso eventualmente na substituição de uma ou outra palavra, como aconteceu por exemplo com "afrodescentente" e "pessoa com deficiência", mas não são efetivos para mudar a estrutura de uma língua.
Qualificar uma língua como sexista, por ter gênero baseado em sexo ou por ter o masculino como forma genérica, nos parece algo precipitado. Até conhecermos melhor a estrutura social daqueles povos cujas línguas não têm distinções de gênero, não podemos afirmar que é a língua que produz ou que sustenta historicamente as desigualdades de gênero.