* Escritor e jornalista especializado em divulgação científica
Em março deste ano, o biólogo e jornalista John Bohannon convenceu parte significativa da mídia internacional de que o consumo, em doses moderadas, de chocolate amargo aumenta a eficácia de dietas para emagrecer. Usando uma versão germanizada de seu nome, "Johannes", ele assinou um estudo sobre o assunto, publicado em periódico científico. Divulgado por uma assessoria de imprensa, o trabalho conquistou rápida repercussão: foi destaque no jornal alemão Bild, na edição germânica da Cosmopolitan, em tabloides ingleses, em inúmeros websites e em programas de rádio e televisão dos EUA à Austrália.
E então, a virada: em maio,escrevendo para o site io9, Bohannon confessou que o estudo tinha sido concebido para gerar resultados falsos. A conclusão sobre chocolates e dietas era inválida, e um mínimo de alfabetização científica bastaria para ver isso. Mas a mídia havia engolido o press-release sem nenhum tipo de crítica ou ressalva. Como diz o texto do io9, o material oferecido era "sexy" e bem escrito. Foi o que bastou para produzir títulos como "Cientistas dizem que comer chocolate pode ajudar a perder peso" (no Irish Examiner), "Chocolate acelera perda de peso: pesquisa alega que ele baixa colesterol e melhora o sono" (no britânico Daily Express).
Muito do comentário que se seguiu à revelação no io9 tratou todo o fiasco midiático como resultado de um embuste, uma "fraude". Mas, a rigor, não houve fraude. O estudo foi realizado, voluntários foram recrutados e tratados de forma ética e divididos em três grupos - um de dieta, um de dieta com chocolate, o terceiro alimentando-se normalmente - e os resultados, registrados e analisados de modo honesto e competente: sim, é verdade que o grupo submetido à dieta com chocolate emagreceu mais! O problema é mais sutil, e mais grave: Bohannon não encantou a mídia com uma anomalia - um estudo fraudado, com dados falsos ou inventados. Ele encantou a mídia com um estudo baseado em dados reais, só que muito ruim - um tipo de coisa que abunda por aí.
Numa pesquisa sobre algo complexo como saúde humana, uma das principais dores de cabeça do cientista é separar o efeito que se deseja medir daquele provocado pelos chamados "fatores de confusão" do dia a dia. Por exemplo: o voluntário perdeu peso graças à dieta ou porque brigou com a namorada?
Bohannon, deliberadamente, tomou duas decisões que intensificavam, em vez de reduzir, o ruído causado por esses fatores: usou uma amostra muito pequena (menos de 20 pessoas) e fez comparações múltiplas, avaliando 18 diferentes resultados, entre exames de sangue, pressão arterial, peso e qualidade do sono. Um grande número de avaliações aumenta a chance de uma delas produzir um resultado "significativo", mas por pura sorte: é como se cada medição fosse um bilhete de loteria diferente.
Esses problemas - amostra pequena, comparações múltiplas - são comuns. Há áreas inteiras de pesquisa, como a psicologia social, que sofrem com o que se convencionou chamar de "crise de reprodutibilidade", já que um grande número de estudos não tem suas descobertas confirmadas por investigações posteriores, em muitos casos por culpa de fatores como os explorados por Bohannon.
Aliás, o fato de o artigo, tal como publicado em "International Archives of Medicine", descaradamente omitir o número de voluntários envolvidos deveria ter feito soar alarmes. Depois que a pegadinha veio a público, o editor do periódico disse, no Facebook, que o trabalho na verdade havia sido rejeitado, aparecendo no site da revista, "durante algumas poucas horas", por engano.
Todo o experimento foi realizado como parte de um documentário produzido para a televisão alemã sobre a "ciência lixo de dietas" que infesta a mídia. O autor do documentário, Peter Onneken, queria demonstrar "como é fácil transformar ciência ruim em manchetes". A implicação é que trabalhos com resultados tão ou mais questionáveis que o do chocolate emagrecedor são rotineiramente alavancados e reproduzidos de modo acrítico por jornalistas "preguiçosos", na definição de Bohannon.
É fácil simpatizar com essa avaliação, só que talvez "preguiça" não seja o melhor diagnóstico. Veículos com tradição de seriedade no jornalismo de ciência, como o New York Times, passaram incólumes pelo hype do chocolate emagrecedor. Mas a cobertura atual dos temas de saúde e nutrição vem sendo pulverizada em seções e websites de "bem-estar" que, no fim, estão para o jornalismo científico como as páginas de fofocas de celebridades estão para o jornalismo cultural: espaços onde velocidade e impacto contam mais que relevância ou credibilidade.
Nesse cenário, onde editores são incentivados a deixar a qualidade do conteúdo em segundo plano, já que passam a responder prioritariamente pelos números da audiência, a responsabilidade de separar o joio do trigo acaba relegada ao pobre leitor desavisado. Que no fim é quem premia, com seus cliques e sua atenção, o jornalismo que temos.