Wendel Calixto comentou: "Escrava filha da puta desgraçada, volta pra senzala fugitiva, dois anos no xicote qnd teu dono te capturar de volta... preta imunda". Teve sete curtidas.
Karl Jagger sugeriu: "Joga pra cima, se voar é urubu e se cair é bosta". Quarenta e oito usuários deram like.
Luanna Santos reclamou: "Não tenho tv colorida pra ficar olhando essa preta não." Atraiu 65 curtidores.
Ao mesmo tempo em que mostrou o quanto o racismo ainda está impregnado na sociedade brasileira, a série de ataques à apresentadora do tempo do Jornal Nacional, Maju Coutinho, em comentários a uma publicação no perfil oficial do telejornal no Facebook, na noite de 2 de julho, também suscitou discussões sobre os limites do anonimato na internet. Como conciliar o direito à privacidade com a escalada ofensiva e criminosa que cresce sob pseudônimos e perfis fakes, como boa parte desses que atacaram a jornalista?
Um dos primeiros a denunciar as mensagens criminosas foi o antropólogo Bruno Puccinelli, 32 anos, de São Paulo, que fez uma cópia da tela e a enviou a três órgãos federais. Antes, deixou um recado na mesma página:
"Acabo de fazer um print de todos os comentários dessa postagem e irei levá-lo às autoridades cabíveis. Racismo é crime".
A publicação, que recebeu mais de 23 mil curtidas, foi uma das responsáveis por deflagrar reações em todo o país. Bruno calcula que, dos cerca de mil comentários copiados, pelo menos um terço tinha traços racistas. Até a última sexta-feira, a polícia só havia identificado um suspeito - um adolescente de 15 anos.
No "Jornal Nacional", Maju comenta ofensas: "Os preconceituosos ladram, mas a caravana passa"
O episódio revela as fragilidades na punição de crimes cometidos pelas redes, que frequentemente acabam impunes. Na teoria, a identificação dos IPs das máquinas onde são criados os perfis falsos seria o caminho para identificar os responsáveis. Na prática, uma série de artimanhas técnicas, como usar máquinas alugadas ou serviços pagos como o VPN, que dificulta a determinação do IP da conexão da rede, associada à falta de estrutura para investigar crimes digitais, torna o problema bem mais complexo.
Para o advogado especializado na área de mídia e entretenimento Marcos Bitelli, professor da PUC-SP e do Instituto Internacional de Ciências Sociais, a questão é grave e não há solução no horizonte. Ainda que a lei seja uma só para crimes cometidos no mundo real ou virtual, a dificuldade é fazer com que suas consequências tenham efeito no ambiente digital. A proliferação de páginas hospedadas no Exterior é mais uma carta a embaralhar o jogo.
- Existe uma total lacuna. As normas precisam ter efetividade, e muitas vezes, para isso, se precisa de suporte técnico. A lei não alcança quem está fazendo. Teve aquele caso do juiz que mandou travar o Whatsapp, por exemplo, e todo mundo ficou contra. Mas como se poderia bloquear a troca de mensagens indevidas se não se tem acesso ao verdadeiro autor? Isso tudo é uma grande incógnita no mundo do direito - questiona.
Bitelli lembra que, durante o julgamento das biografias, o próprio presidente do STF, Ricardo Lewandowski, comentou que existem pelo menos quatro perfis falsos no Facebook com fotos dele e da sua família - e que não consegue removê-los.
- Aí nem se trata de anonimato, são pessoas se apropriando ou assumindo a identidade dele. E ele disse abertamente na sessão: "Chegou uma hora em que eu cansei, não sei mais o que fazer para dizer que eu sou eu". Se isso acontece até com o presidente do Supremo, imagine - alerta Bitelli.
Na avaliação do advogado, uma oportunidade de ampliar as possibilidades de regulamentação foi perdida durante a aprovação do Marco Civil da Internet no Brasil, onde prevaleceu a defesa da total liberdade na rede. Mas a visão é contestada por estudiosos digitais como Fabro Steibel, coordenador-geral do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro. Para Fabro, o marco foi uma conquista importante ao estabelecer quais são os direitos dos usuários a serem protegidos, antes de tipificar crimes.
- No Marco Civil, fica respeitado o direito à privacidade. Quando há crime, aí sim tem que se investigar, o que é diferente de vigilância em massa - argumenta.
Como ilustração, Fabro cita o caso da espionagem praticada pela Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA: sob pretexto de investigar possíveis casos terroristas, passou a vigiar todo mundo - inclusive o governo brasileiro e a Petrobras, em nome de interesses econômicos:
- A vigilância em massa parece ser interessante para prevenir crimes, mas o que resulta é invasão de privacidade, extrapola os limites da Justiça. Seria como, em vez de procurar agulha no palheiro, investigar todo o palheiro para ver se tem agulha. Não precisa vigiar todos, só quando há suspeitas - diz.
Para isso, um caminho seria a capacitação do Estado para investigar esses crimes, como a ampliação das delegacias de crimes digitais.
- Um usuário falso não é irrastreável. Não existe comportamento anônimo, somos uma máquina que está ligada a um corpo - observa.
A defesa da privacidade e do direito ao anonimato é também uma bandeira do americano Cole Stryker, autor do livro Hacking the Future: Privacy, Identity and Anonymity on the Web ("Hackeando o Futuro: Privacidade, Identidade e Anonimato na Rede", ainda não traduzido no Brasil). Em entrevista por email, de Nova York, ele diz que empresas podem tomar iniciativas para conscientizar seus usuários, mas não vê como positiva qualquer tentativa de proibir o anonimato. O argumento também passa pelo viés prático: mesmo que se criasse uma legislação, seria ineficaz porque usuários mais avançados certamente encontrariam maneiras para burlar a lei, permanecendo ocultos.
- Obviamente o anonimato permite que as pessoas façam coisas ruins, mas também é assim com muitas outras liberdades. As pessoas abusam, e vão continuar abusando, do anonimato, mas é o preço da liberdade - defende.
Na história da internet, os riscos associados ao anonimato são relativamente recentes. Doutor em comunicação social e professor de jornalismo digital da Faculdade de Comunicação Social da PUCRS, Marcelo Träsel observa que, até meados dos anos 2000, o anonimato era visto como uma forma de dizer a verdade sem se colocar em risco. Assim, um trabalhador poderia vazar informações de atos ilícitos sobre a empresa em que trabalhava sem perder o emprego, por exemplo. Embora os "trolls" sempre tenham existido, originalmente estavam associados a tentativas de fazer provocações engraçadas. Atualmente, porém, o fenômeno desandou em manifestações de ódio, com pessoas querendo destruir ideias ou perspectivas diferentes das suas. Diante da crescente agressividade, alguns portais de comunicação têm desligado sua caixa de comentários. Mas, em redes sociais, que lidam com fluxos de interação, o dilema é maior.
- É preciso lembrar que Facebook e Twitter ganham com essas manifestações. Cada comentário gera mais visualizações - analisa.
Diante do imbróglio, Träsel acredita que seria mais eficiente investir em educação dos usuários, para criar uma cultura de intolerância à agressividade na rede, em vez de tentar rastrear todo mundo.
- Proibir anonimato é enxugar gelo. Talvez a NSA consiga identificar qualquer pessoa, mas os recursos que a gente tem são limitados - constata.
Leia duas entrevistas sobre o assunto com especialistas americanos:
Matthew Garrett: "As pessoas são más umas com as outras"
A crescente disseminação de robôs, especialmente com fins político-eleitorais, é outra face da discussão. Mas mesmo aí analistas da rede veem pouca novidade: se hoje correntes políticas tentam influenciar usuários no Facebook ou no Twitter, antigamente grupos políticos mandavam cartas com reivindicações para o Congresso fazendo-se passar por eleitores, numa prática que Träsel identifica como "astroturfing" - conceito que designa ações políticas ou publicitárias que tentam criar a impressão de que são movimentos espontâneos e populares.
- Achar que tem de proibir comentários para não haver crimes é a mesma coisa que achar que não se deve ter telefone para não haver trotes. Ou que, para não ter acidentes, é melhor não ter carro. O que precisamos discutir é o uso que se faz dessa tecnologia - sugere Fabro Steibel, coordenador-geral do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.