Caracterizada até semanas atrás por coesão e maioria segura de votos, a base aliada do prefeito Sebastião Melo na Câmara de Vereadores de Porto Alegre foi rachada pelo efeito da enchente.
A cizânia ficou cristalizada nas sessões dos dias 29 de maio e 3 de junho, quando o governo saiu derrotado nas votações dos projetos de socorro aos atingidos pela tragédia climática. Uma parcela dos governistas defendeu as propostas originais do Executivo sob argumento de que há limites para o orçamento, mas outra fatia de aliados considerou as ofertas insuficientes, criticou a suposta falta de articulação política e se somou aos independentes e oposicionistas para aprovar emendas que elevaram os benefícios.
A Secretaria Municipal da Fazenda (SMF) ainda não tem o somatório do impacto financeiro, mas aliados de Melo já consideram abertamente a possibilidade de vetos.
— Se não vier recurso federal, não tem como manter os benefícios aprovados. Não vai ter como suprir. Ou até se paga, mas deixa de atender a saúde, que está com emergências lotadas, a educação e todas as outras pastas. Temos de encontrar solução e ajudar, mas com responsabilidade — avalia a vereadora Cláudia Araújo (PSD), que atuou interinamente como líder do governo na sessão de segunda-feira (3).
A prefeitura se manifestou em nota e deixou em aberto as hipóteses de sanção ou veto: “As propostas apresentadas, acordadas com a base, cobriam um período inicial de alívio econômico, para que um pacote mais robusto fosse desenvolvido com as devidas repercussões. Quando o conjunto da redação final com as emendas aprovadas retornar do Legislativo, a gestão finalizará a análise dos impactos com responsabilidade e irá posicionar.”
Claudio Janta (SD), um dos parlamentares governistas que impuseram as derrotas, avaliou as propostas de Melo como “insuficientes para o momento”. Ele diz que os projetos foram remetidos sem articulação que permitisse aprimoramento.
— Isso (enchente) é pior do que o covid. No covid, a economia não perdeu estoques e patrimônio. Agora, pega um mercadinho na vila. Perdeu tudo. Estamos querendo reorganizar o governo. Não estamos disputando. Mas, se o governo vai vetar, aí vamos disputar — projeta Janta, que foi líder do governo Melo entre fevereiro de 2022 e de 2023.
Os benefícios aprovados envolvem o perdão da cobrança do IPTU e Taxa de Recolhimento de Lixo (TCL) por dois anos para os imóveis atingidos - residenciais e empresariais - e do Imposto Sobre Serviços (ISS) de profissionais autônomos entre agosto e dezembro de 2024. Também estão envolvidos na discussão três benefícios pecuniários da prefeitura aos impactados: estadia solidária, um auxílio humanitário e outro para a retomada econômica. Em todos esses itens, as propostas originais do governo Melo foram derrotadas por emendas de plenário que ampliaram as concessões.
A discussão sobre o IPTU aconteceu na sessão desta segunda-feira. A proposta da prefeitura era a de isentar por dois meses a cobrança do tributo. Na condição de líder do governo, Cláudia argumentou que era um prazo inicial para que o Executivo produzisse estudos detalhados sobre a capacidade de ajuda. Outro item, diz a vereadora, era checar os diferentes níveis de socorro. Ela exemplifica: um imóvel térreo invadido pela água precisaria de maior auxílio do que outros em andares elevados que ficaram inacessíveis, mas não foram destruídos.
Não adiantou. Em uma articulação que foi da bancada do Novo ao PSOL, passando por descontentes do SD e do PP, foi aprovada uma emenda que estendeu para dois anos o prazo de remissão do IPTU, até maio de 2026. Outra emenda determinou que os atingidos que já pagaram o IPTU e a TCL de 2024 em cota única poderão usar 80% dos valores para abatimento de tributo futuro.
A bancada do PCdoB também passou uma emenda prevendo isenção de tarifas de esgoto e água para quem comprovadamente hospedou desabrigados em seus lares. No meio da discussão sobre o IPTU, numa tentativa de derrubar a sessão, Cláudia pediu verificação de quórum, mas a maioria dos vereadores registrou presença e o ato teve continuidade. Com a derrota governista inevitável, todos os vereadores se manifestaram favoráveis à emenda. Um registro formal para os anais da Câmara.
— Nesse momento, temos uma grande pressão por serviços públicos e uma redução significativa de receita. Nos preocupa esse cenário — diz Rodrigo Fantinel, titular da Fazenda, mesmo antes de serem finalizados os cálculos de impacto financeiro.
Articulação entre situação e oposição
Na sessão de 29 de maio, a prefeitura propôs mexer em um programa de socorro que já havia sido aprovado em setembro de 2023, para contemplar os afetados pelas cheias daquele ano. A proposta do governo era ampliar a estadia solidária de R$ 700 para R$ 1 mil. O prazo de concessão do benefício seria estendido de três para 12 meses. Uma emenda articulada inicialmente por Janta elevou o valor para até R$ 1.677. O Executivo não propunha mudança em relação aos auxílios, o humanitário e o da retomada econômica, que continuariam com os valores de cerca de R$ 3,1 mil. Contudo, uma emenda, que teve entre os autores Mônica Leal e Mauro Pinheiro, ambos do PP, chegou a dobrar valores. O humanitário passou para R$ 5.240 e o da retomada econômica alcançou R$ 6.287.
A ampliação dos benefícios contou com articulação entre parte da bancada de situação e o vereador Roberto Robaina (PSOL), entre outros oposicionistas. O movimento irritou o experiente Idenir Cecchim (MDB), líder do governo que está licenciado da vereança no início de junho. Ele foi ao microfone da Câmara na última sessão de maio para dizer ironicamente, após a derrota, que Robaina era o novo líder do Executivo.
— O governo perdeu o controle e a maioria na Câmara. Já vinha sofrendo desgastes, mas a enchente foi o salto porque o despreparo foi completo. Houve um descolamento da base e articulamos para construir uma nova situação na Câmara — afirma Robaina.
Aliados fieis de Melo reconhecem a fragilização no Legislativo. A vereadora Cláudia aponta supostos fatores eleitorais.
— Estamos em ano de eleição. Alguns vereadores tentam se manter, independente se vamos ter condição. Temos vereadores pensando em não perder voto. Precisamos de equilíbrio — diz a parlamentar.
O vereador Pablo Melo (MDB) avalia que faltou articulação da Fazenda para apresentar os objetivos da proposta de suspensão do IPTU por dois meses. Fantinel, titular da pasta, assegura ter feito reunião com aliados.
— O governo vinha numa toada de desenvolvimento econômico, não tinha problema em votações na Câmara, mas veio o desastre. Naturalmente a base, pensando nos reflexos, pode estar impactada e desunida. O prefeito é um político experiente e vai reconstruir pontes — confia Pablo.