Existencialistas ou pragmáticos, economistas ou sociólogos, não importa, todos correm atrás da mesma resposta: o que será do mundo depois da pandemia de coronavírus? Antes de mais nada, é preciso dizer que nenhum dos oito entrevistados a seguir é taxativo e aponta com convicção o caminho do Eldorado. Cada um deles, revela uma tendência, uma alternativa, quando muito uma luz no final do túnel. Nessa reportagem, não há só a expectativa por dias melhores, com a vitória sobre a covid-19, mas também a preocupação com a realidade futura.
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Na última semana, durante a live "Líderes Pensadores, Orientações e Cenários da Economia", promovida pelo grupo Mobilização por Caxias (MobiCaxias), José Galló, presidente do Conselho das Lojas Renner, se referia a essa crise como mais uma na vida de quem já tem alguns anos de história de vida. Para ele, todas as crises obedecem a um mesmo movimento.
– Tudo começa com um momento de pânico, de não se saber muito bem o que fazer. Aí, vem um período de realidade, de se pensar no que se deve fazer. Depois, vem um aumento da procura por uma solução. E aí, vem a solidariedade, que é a busca de uma solução comum – avalia Galló.
A busca por soluções, acredita, ainda está na mente de poucas pessoas, porque grande parte ainda parece estar envolvida com o problema.
– Esse mundo pós-pandemia vai ser bastante diferente. Haverão mudanças na forma de trabalhar, na forma de nos transportarmos, na forma de nos reunirmos. Vamos precisar mudar também a forma como a gente organiza uma equipe. Vamos precisar preparar uma parte das pessoas para trabalhar nessa sobrevivência, e outro pequeno grupo para pensar como será esse novo mundo, essa nova realidade – defende.
E complementa, com foco no diferencial de negócio que vai filtrar empreendimentos de sucesso ou de derrocada, seja antes, durante ou depois da crise:
– A dureza da crise nos faz procurar por soluções — sintetiza.
CUSTO BRASIL
Há uma expressão que volta e meia aparece nas declarações dos economistas que é o Custo Brasil. Se refere, em resumo, às barreiras estruturais, burocráticas e econômicas que pesam sobre as costas das empresas brasileiras, e que no final da ladeira geram consequências para toda a população. Na visão de alguns dos entrevistados, como Mauro Bellini, vice-presidente de Indústria da CIC Caxias e presidente do Conselho da Marcopolo, esse é um dos vilões do país, que nos torna tão dependentes da indústria chinesa.
– Estávamos muito tranquilos na questão de dizer que produzir na China é mais barato. Por isso, deixamos eles fabricarem e nós passamos a comprar deles. E agora estamos sofrendo com essa desindustrialização do Brasil, com a dificuldade na aquisição de equipamentos, como os respiradores – revela Bellini, na mesma live promovida pelo MobiCaxias.
Para o empresário, é imprescindível trabalhar para que o produto brasileiro possa ser de boa qualidade, mas também seja competitivo no mercado internacional. A lição de casa, da porta da fábrica para dentro, com investimento em tecnologia e qualidade, as empresas têm feito, acredita Bellini. Mas quando se trata da parte do governo, ainda há um longo caminho a ser percorrido.
– O nosso custo é muito alto. Temos custo com segurança privada, com a falta de infraestrutura e trabalhistas – diz, quase em tom de desabafo.
Será assim depois que a pandemia de covid-19 passar por aqui? Difícil saber. Para Bellini, o caminho é dominar o Custo Brasil e tornar a indústria brasileira mais competitiva. Lembrando que a estimativa de Custo Brasil, do governo e do setor privado, é de R$ 1,5 trilhão por ano.
LIBERALISMO ECONÔMICO
Uma das discussões, que aflora nos ambientes virtuais já que aglomerações e reuniões presenciais não são possíveis, pontuadas por acadêmicos, economistas e toda sorte de intelectuais, reside na crise do liberalismo como via global. Um dos grandes defensores desse modelo em Caxias do Sul é Joarez José Piccinini , diretor de Economia, Finanças e Estatística da CIC de Caxias e diretor-superintendente do Banco Randon. Para ele, a pandemia não coloca o liberalismo econômico em xeque mas, sim, o papel dos governos.
— Quando se olha o custo da produção no Brasil é um dos mais caros do mundo. Porque nós temos uma carga tributária exagerada, com diversas contribuições e taxas. No Brasil, as decisões são muito demoradas, é burocracia desnecessariamente absurda — explica.
Para Piccinini, em momentos extremos como esse, mesmo que não tenha uma origem econômica como no Crash da Bolsa em 1929, o governo deveria socorrer a sociedade.
— Eu tenho batido muito na tecla de que a nossa situação das contas públicas tem se deteriorado ao longo do tempo. Menos mal que a Reforma da Previdência foi aprovada. Mas, em situações extremas, como essa pandemia, nunca vivida na história, o importante era que os governos estivessem em condições de agir forte. Se tivéssemos governos municipais, estaduais e federal fortalecidos, eles poderiam dar isenção de pagamento de impostos às pessoas e às empresas. Como consequência, os preços dos insumos cairia drasticamente e as empresas não iriam demitir funcionários — defende.
Entre as alternativas e apostas para o futuro, Piccinini idealiza um país de governo mínimo, que possa atuar mais como regulador do que centralizador das decisões. E que invista fortemente em educação, como o fez a Coreia do Sul.
DESAFIOS DE EMPREGO E RENDA
O consultor Ivan Carlos Polidoro é autor do livro, de nome sugestivo para esse momento, A Convergência Essencial, integrando marketing e planejamento estratégico. Polidoro defende uma postura mais ousada para as empresas que vislumbram o cenário pós-covid-19.
— Mais do que nunca, o passado vai nos ensinar pouco.Há um novo mundo, que vai exigir novas formas de empreender e operar. O acompanhamento dos planos de ação precisa ser encurtado, quase que diário, para realizar os ajustes às novas realidades que forem surgindo — diz.
Para além da dinâmica das equipes estratégicas, Polidoro entende que haverá um conflito logo ali, na relação entre os trabalhadores e as empresas.
— A escassez de vagas vai tornar a barganha de negociação altamente favorável ao empregador para a maioria das funções. Apenas conseguirão algum equilíbrio ou vantagem aqueles trabalhadores altamente diferenciados. Por isso, a educação e o ensino técnico e comportamental, são decisivos e vão determinar quem sobe na carreira e na vida e quem vai ficar olhando os outros poucos subirem — aposta.
Polidoro acredita que a distribuição de renda vai piorar pelo achatamento da maior parte dos salários em função do desemprego. Isso pode estimular o empreendedorismo, mas é preciso ter um cuidado especial quanto a essas iniciativas, pondera o consultor.
— Empreender sem fundamento técnico é aventura, não uma opção consciente e racional.
Polidoro revela ainda algumas dicas para que as pessoas possam reajustar o perfil que o mercado almeja para depois da pandemia.
— A multifuncionalidade já é uma realidade e vai se acentuar. O empregado superespecializado vai existir em pequenas tarefas industriais rotineiras e mesmo nas áreas administrativas. Ambos correm o risco de serem substituídos por máquinas e por inteligência artificial. Não dá mais para ser apenas um fazedor de tarefas. O futuro vai exigir mais pensadores do trabalho com elevado conhecimento e preparo para avaliar, propor mudanças, testar, ajustar, implementar, medir e, imediatamente depois, começar tudo de novo.
SEM ROMANTISMO
Dentro dessa perspectiva de mudanças apontadas pelo consultor Ivan Carlos Polidoro, o professor do curso de Administração da UCS, Giancarlo Dal Bó entende que a crise estimulou tomadas de decisão de forma mais rápidas. Ele exemplifica essa posição com as alternativas de tele trabalho, home office e aulas virtuais.
— O home office já existia. Mas creio que essas ideias surjam pra ficar. As organizações sempre tiveram uma postura de controle, de olhar o que o empregado faz e por quanto tempo trabalha. Hoje, ele precisa continuar a dar resultado a partir da sua casa. É uma questão de confiança — avalia, entendendo que, para isso dar certo, é preciso contar com equipes flexíveis e profissionais com mais autonomia dentro das organizações.
Ao mesmo tempo em que estima uma mudança da relação ente os trabalhadores e as empresas, Dal Bó é pessimista quanto à ideia que se tem propagado de que depois da crise da pandemia todos seremos pessoas melhores.
— Não sou muito romântico. Muitos acham que depois dessa crise as pessoas serão melhores. Eu não acredito, mas torço — resigna-se.
Para referendar seu ponto de vista, o professor exemplifica o atual momento em que o Brasil atravessa.
— Eu imaginava que as discussões de "torcidas políticas" iam ficar para trás. Parece que piorou. As facções ficaram ainda mais raivosas.
GOVERNOS CENTRALIZADORES
O cientista político João Ignácio Pires Lucas corrobora da mesma ideia do professor Giancarlo Dal Bó, digamos, poucos otimista, de uma sociedade mais integrada e coesa para depois que a covid-19 passar. João Ignácio tende a crer em governos de linha mais dura, sobretudo no Brasil.
– É preciso tempo para que tu tenhas uma população com simpatia à globalização meio Barack Obama (ex-presidente norte-americano), essa versão de centro-esquerda com visão liberal junto com uma sociedade de mercado. No Brasil, do ponto de vista do capital, suspeito uma visão mais autoritária e centralizadora por parte do governo.
João Ignácio revela que há um caminho que pode vir a se bifurcar, como linha de condução do ponto de vista da ciência política.
– Para o bom funcionamento da democracia é preciso uma população qualificada, uma boa sociedade, ou de boas instituições? Há um conjunto de pesquisas e estudiosos que dizem que o sucesso ou o fracasso da economia de mercado e da democracia depende da cultura da sociedade. Se antes se tinha o pensamento só no lucro, agora tem de se virar com a solidariedade. E que possa haver uma perspectiva boa, das pessoas se fortalecerem nisso. Ou não. Para um lado mais do Platão (filósofo grego), vai depender mais das instituições – observa.
Qual caminho será esse? Se João Ignácio pudesse escolher, faria uma mescla das duas alternativas. Mas não cabe ao cientista político o cargo de timoneiro nessa embarcação global.
— Tem uma mudança cultural que se percebe no mundo, uma perspectiva do Max Weber (intelectual, jurista e economista alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia), em que as pessoas passem dos valores materiais, como segurança de emprego, para valores mais pós-materiais e de pós-expressão, como valores de autonomia e auto expressão — defende.
URBANIDADE E ISOLAMENTO
É só buscar pelas redes para que se encontre visões pessimistas de que essa não será a primeira epidemia a paralisar o planeta. Haverão outras, e se tomarmos como pressuposto a pandemia de coronavírus, uma das tendências será a preocupação maior com a vida da porta de casa para dentro do lar. Ao mesmo tempo, corre em paralelo a revisão de uma vida com menos carros, mais espaço para pedestres e transporte público. Mas chegaremos enfim, a uma possibilidade de um êxodo urbano, das pessoas abandonando as cidades para morar no interior? A arquiteta Jéssica De Carli, responde:
— Menos de 1% do território nacional é considerado urbano e 85% da população brasileira vive nele. Acho muito difícil que a pandemia interfira nesse processo. Os números apontam que as grandes cidades estão cada vez mais populosas e as pequenas cidades ao redor se mantiveram ou diminuíram o seu número de habitantes na última década. Na Serra Gaúcha, por exemplo, cidades como Flores da Cunha e Garibaldi se mantém com os mesmos números populacionais há anos e a tendência é cair. Acredito em pequenas revoluções urbanas, em cidades mais verdes, em hortas comunitárias. Acredito que todo terraço poderá ser uma "mini" horta particular ou coletiva. Acredito mais em uma cidade urbana verde do que no êxodo urbano.
Se no Brasil as pessoas vão vivenciar reformulações na mobilidade, como já ocorre na Europa, ainda é incerto, mas é a aposta de Jéssica.
— Em relação às questões que surgem sobre o impacto na mobilidade, natural que se, os carros diminuírem, as ruas se tornarão grandes eixos de ligação desses espaços verticalizados. A Europa já nos revela isso, cidades inteiras subterrâneas ligando um espaço ao outro por vias e metrôs. Na realidade, todas essas questões já estavam "em curso" e em plena discussão, a pandemia apenas acelerou o que poderia levar décadas para acontecer. Essa é a minha aposta para o futuro da urbe — revela.
As experiências de isolamento e confinamento, entende a arquiteta, vão fazer com que ocorra uma nova tendência no que se refere aos projetos.
— Eu apostaria na cozinha, nas áreas de trabalho e nos terraços como os grandes diferenciais a partir de agora na incorporação imobiliária. Quem ainda vai querer fechar as suas sacadas depois dessa Pandemia? Somos seres solares e precisamos desse contato com a área externa. Viveremos em cidades mais urbanas, porém com uma relação melhor com o meio externo, praças, parques e com a rua — espera.
EM BUSCA DE AR
Há uma certa estranheza no ar, uma sensação de sufocamento. Pelo menos essa é a percepção do desembargador Leoberto Brancher, do Tribunal de Justiça (TJ), um dos expoentes da implantação dos conceitos da Justiça Restaurativa.
– Uma coisa que tenho refletido muito e que tem uma implicação simbólica é a falta de ar. O que mais se busca hoje são respiradores. É possível que isso simbolize o sufocamento das vias aéreas, do espaço urbano, do espaço econômico, do espaço de autorealização. Uma interpretação, que pode ser curativa é que nos falta ar – filosofa.
Para além das posições de governos, sistemas políticos e vias econômicas, o desembargador expõe uma verdade, sem eufemismos.
– O momento é de uma encruzilhada existencial para a dimensão pessoal e uma encruzilhada civilizatória, na dimensão da humanidade. O que a gente vai produzir como resultado desse processo vai da nossa capacidade pessoal, de fazer um mergulho subjetivo de maneira que ele produza significado. Não apenas um significado imediato do ponto de vista da resolução das necessidades básicas, mas numa perspectiva mais profunda de ressignificação das necessidades multidimensionais.
Brancher entende que a Justiça Restaurativa, para além da filosofia, apresenta mais do que um conjunto de ideias, um conjunto de posturas, e uma metodologia, que podem instrumentalizar as comunidades para esse mundo pós-pandemia. Ele elenca como elementos que podem fortalecer os indivíduos e a sociedade o fortalecimento do senso de comunidade, o reconhecimento da interdependência, o foco nos relacionamentos, a promoção da autonomia dos sujeitos e a perspectiva de gestão mais colaborativa.
Mas, afinal de contas, o que essa reflexão tem a ver com a economia? Para responder, o desembargador se mune de duas sentenças, ambas provocativas.
– Duas frases para a gente concluir. Uma nos joga para o passado: “Numa situação de emergência a solução mais ousada apode ser também a mais segura” (Tito Lívio, historiador romano). Outra, nos lança para o futuro: “O século 21 será ético e espiritual, ou não será” (André Malraux, escritor e pensador francês).
Ou seja, uma encruzilhada para além da economia, política ou sociologia. Mas existencial.
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