Historiadora best-seller, Mary Del Priore segue com o propósito de tornar a leitura uma atividade prazerosa e acaba de lançar o primeiro volume da tetralogia Histórias da Gente Brasileira (Ed. LeYa, 432 págs., R$ 54,90). Autora de 45 livros, desta vez debruça-se no universo multicolor das pessoas comuns, iniciando a série pelo Brasil Colônia. Na sequência, abordará Império, República Velha – para a pesquisa, usará muito os relatos de Erico Verissimo, seja sobre a Coluna Prestes ou sobre a atividade da mãe, na máquina de costura – e terminará, no quarto volume, entrevistando figuras importantes, contando sua versão sobre a República. Por isso decidiu usar a palavra história no plural, para dimensionar essa diversidade e possibilitar o surgimento de outras vozes, além da do historiador.
– A história pode ser literária, pode ser apaixonante, mas a gente tem que dar voz a outros protagonistas – diz.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, ela fala sobre as influências desconhecidas do Brasil Colônia na sociedade do país, sobre o machismo das mulheres e a importância de conhecer o passado para reforçar as identidades nacionais.
Pioneiro: Por que a senhora decidiu contar a história através de pessoas comuns e o que elas podem revelar sobre o Brasil?
Mary Del Priore: Quis fazer da minha vida uma grande bandeira, de conhecer melhor a vida dos nossos antepassados, e a maioria dos nossos antepassados é anônima. A gente raramente conhece o bisneto de Joaquim Nabuco ou da Princesa Isabel. Mas eu acho esses personagens anônimos tão cheios de vida, de histórias para contar. Minha batalha é por fazer da história uma paixão nacional. Sempre tentei aproximar a escrita da história de uma escrita literária. Meu grande desejo é que leitor leia um livro de história com o mesmo entusiasmo e abandono que lê um romance, uma ficção. E é curioso porque esses personagens anônimos nos remetem àquilo que somos, nossa opção por esse cotidiano, por esses gestos repetitivos, por descortinar além daquilo que as pessoas conseguem fazer, produzir, transformar... Quem eram eles? Como viviam? Quais eram seus amores, casamentos, traições? Como tratavam de abandono, dor, doença, morte? É uma tentativa de enredar o leitor não só no conhecimento do seu passado, mas de fazê-lo de maneira agradável, transformando cada pequena história em um romance. Porque a história não deixa de ser um romance verdadeiro, como definiu um grande epistemólogo francês. A ideia é contar história extremamente saborosa, usando esses personagens anônimos, mostrando como o Brasil é diverso. Mostrando como foi difícil arrancar dessas matas o pão nosso de cada dia, o trabalho, como foi preciso se juntar com indígenas, africanos, com outros estrangeiros. No caso do Rio Grande do Sul, se juntar com os peruleiros, que eram aqueles comerciantes que vinham da Bacia do Prata levando produtos e escravos que falavam espanhol para o Rio de Janeiro, sede da Colônia e depois da Corte. Digo que no Brasil houve uma sinergia muito interessante, que é pouco percebida entre esses conhecimentos, entre o saber fazer, as sabências, como diziam nossos avós, que permitiram aos nossos antepassados dar o rosto a esse Brasil.
A preocupação maior com a narrativa e o surgimento de historiadores que levaram isso em consideração potencializou o interesse dos leitores pela história?
Vivemos numa sociedade de comunicação e de imagens, e se o leitor pegar um livro e tiver que escalar uma pedreira para saber que conceito é aquele, o que a pessoa está querendo dizer, e depois tem a nota de rodapé e as referências... Pelo amor de Deus! Nós devemos muito aos jornalistas, porque eles resolveram se debruçar sobre história do Brasil. O Eduardo Bueno é um exemplo disso, ele escreve superbem, além de ser divertidíssimo, tem bossa pra escrever... Isso começou com ele e se proliferou na forma de biografias, com o Eduardo Caldeira, que fez a biografia de Mauá; Fernando Morais, que fez a maravilhosa biografia da mulher do Prestes. A partir daí, a colaboração dos jornalistas levou os historiadores a pensar a maneira de escrever. O impacto do jornalismo na história trouxe muito para a gente. Além da luta dos jornalistas pelo fim da censura nas biografias, acho que os historiadores deviam ter se engajado mais, faço aqui uma crítica. Ando pelo Brasil todo e vejo que há um interesse enorme por história. O que estou fazendo é ir ao encontro de leitores, que não são professores ou estudantes de história, mas são brasileiros que querem saber o que aconteceu antes do hoje.
Que aspectos do Brasil Colônia permanecem ainda hoje na sociedade brasileira?Teria sido impossível mineração da época do ouro sem a presença dos africanos do norte da África, porque eles eram grandes ferreiros e inventaram uma série de instrumentos e técnicas para acelerar a produção aurífera no Brasil. Minas Gerais, no final do século 18, tinha uma população de escravos alforriados enormes, mas não coitadinhos, sobretudo mulheres com casas, joias, mobiliários, que utilizaram a extração do outro para si. Você vê essa sinergia nas técnicas. Outro destaque é o do homem do campo. Mostro, nesse livro, como a vida no campo foi rica, como era habitado por gente que teve que aprender com índios a achar caminhos no meio do mato, a fazer queimadas, identificar se a planta servia para alimento, remédio... Aí você tem todo um universo de uma sabedoria, de conhecer numa forma de nuvem se vai ter chuva ou vento, identificar numa revoada de pássaro se está chegando uma praga, no grito de um bugio se há predador no campo. Conhecimento também repassado para o plantio, protótipo do brasileiro, mas também à medida que a Colônia vai ganhando em riqueza, vamos ter presença maior de estrangeiros no litoral. Holandeses, franceses, há uma mundialização precoce com a presença dos barcos portugueses que vinham da Ásia. Isso vai ensinar os brasileiros a soltar pipa, a soltar fogos, isso veio da China. Aquelas mulheres cobertas com panos, que hoje fazem referência ao Islã, aparecem em pinturas daqui, nossas mulheres eram veladas. Os telhados arrebitados, uso do guarda-chuva, tudo influência asiática... Há um Brasil que a gente costuma olhar de uma maneira muito plana, de senhores e escravos. Mas era um mundo diversificado, globalizado, havia pessoas falando espanhol por causa dessa gente do Sul, as cidades eram muito animadas, com ruído dos vários ofícios, as mulheres tocavam fazendas de açúcar, peitavam seus inimigos, mandavam eliminar seus desafetos... É um outro Brasil que a gente vai desvelando.
Em relação à intimidade e à vida conjugal, as mulheres tinham algum papel de protagonismo?
Mulheres eram valorizadas por serem grandes reprodutoras. A infertilidade, tanto nas tradições portuguesas quanto africanas, era uma maldição. Não havia exatamente casamento como passou a ter a partir do século 19, com noiva de branco, virgindade... Desde muito cedo, elas engravidavam porque, sobretudo no mundo rural, uma família grande eram muitos braços para a lavoura. Não havia na época essa erotização do mundo de hoje, a valorização do sexo, do prazer. Palavras como orgasmo só aparecem nos anos 1980, ninguém está preocupado com o prazer da mulher, só se está preocupado que a mulher faça filhos, sobreviva aos partos – porque eles eram de uma violência... As que tinham mais dinheiro trabalhavam, fiavam lã, faziam doces, compotas para vender, o trabalho feminino dava suporte à casa, à família. As mulheres não tinham problemas em criar a família com outro companheiro quando o marido morria. O trabalho infantil era muito comum, e a vida ia, as pessoas iam sobrevivendo...
As mulheres eram empoderadas, então, desde sempre?
Essa palavra empoderamento está desgastada. Se a gente for olhar a capacidade de criatividade da mulher brasileira para sobreviver sem homens, numa sociedade patriarcal machista, da qual vale a pena lembrar que ela também é responsável – porque as mulheres brasileiras não gostam de deixar o filho lavar a louça, o marido arrumar a cama, quando veem uma mulher inteligente dizem que é sapatão, adoram ver cenas burlescas e patéticas na televisão com piadas sobre mulheres –, apesar de tudo isso, de ser ela mesma machista, elas foram capazes de sobreviver, tocar seus negócios, enriquecer... Interessante como a liberdade que a economia deu à mulher deu a ela muito poder. E isso se vê desde o século 16, 17, com os primeiros registros de viajantes que frequentam tabernas tocadas por mulheres, que, além de vender produtos, emprestam dinheiro a juros. A autoestima de vários grupos depende de conhecer esse passado.
Quanto conhecer quem somos nos aponta para o que podemos ser? Que identidade é essa, a nossa?
É fundamental conhecer o passado não só para resolver problemas. Acho que isso nos dá identidade, e é importante num mundo onde a informação é muito rápida. Você está sendo bombardeado o tempo todo com informação, estamos num mundo globalizado, onde todo mundo se veste igual, come o mesmo hambúrguer e toma a mesma Coca-Cola. Infelizmente, há o enfraquecimento desse aspecto da identidade, que é tão importante. Vale a pena lembrar, também, que não se trata de identidade, mas identidades, no plural, porque o Brasil é múltiplo. O que acontece no Acre não tem nada a ver com o que acontece no Rio Grande do Sul, o que acontece em São Paulo não tem nada a ver com o Ceará. Quando se fala em mulher brasileira, por exemplo, eu digo, calma, é mulheres com s, porque são realidades muito diferentes. É necessário a gente estar alerta para o fato de que temos um passado, que esse passado nos constrói e nós temos que legar aos nossos filhos uma herança, uma memória, porque há muita coisa boa para contar.
Entrevista
Historiadora Mary del Priore fala sobre a nova obra
"Histórias da gente brasileira" dá voz a outros protagonistas
Tríssia Ordovás Sartori
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