Enquanto o Sol passeia por Câncer, a memória me devolve, por insuspeitadas conexões, o difícil momento em que minha avó, já acamada e tomada pela demência da idade, me encarou com olhar vazio, sem mais me reconhecer. Saí do quarto dela para chorar sozinho no quintal. Toda uma parte vital de mim, tecida em afetos e cumplicidades, se esvanecia junto com a própria mente dela. Aquilo doeu demais, porque decretava que dali por diante ela já não seria a minha avó, mas um corpo que somente aguardava a falência final dos órgãos. Doeu porque também constatei que eu havia morrido para ela. Meu choro foi por ela e por mim. Ai, vida, tens dessas coisas...
Na astrologia, Câncer é o signo da ancestralidade e da memória. O que somos, ou podemos ser, que se revelará na etapa seguinte, em Leão, vai depender do que carregamos dos berços primordiais. Ainda que nosso impulso de identidade pessoal rompa com o arcabouço familiar, ainda assim o tomaremos por parâmetro. Ainda que nossa matriz de afetos seja carregada de rejeições, ainda assim haverá uma memória a manter vivo o que antes nos machucou – e certas dores também costumam engrossar a argamassa do que somos. Claro que vamos sempre optar pelos nutritivos afetos, não estou a exaltar traumas, apenas refletindo sobre a dor do forçado esquecimento.
E essa dor vem caracterizando nosso tempo. Basta observar a frequência com que ouvimos falar da Doença de Alzheimer. É um mal moderno, cada vez mais próximo. Até já sabemos bastante sobre suas etapas, em que a perda da memória se amplia aos níveis mais instintivos. A inexorável degeneração cognitiva culmina na morte. Mas passamos a perder a pessoa querida desde seus primeiros lapsos. Sei o quanto doeu ouvir da minha madrinha, já diagnosticada com a doença, uma mesma pergunta quatro vezes em menos de uma hora. E já não ver aquele viço vivaz tão dela. Nosso tempo tem mais esse desafio: testemunhar a morte em vida de quem amamos. E morrermos um pouco a cada dia no esquecimento alheio.
Ironicamente, passamos a usar ainda mais o termo memória, por conta de nossos apetrechos de comunicação. Meu celular, por exemplo, já está com a memória quase cheia. Vivo apagando coisas para dar espaço a outras. Minha memória humana recorda de quando comprei o aparelho, há não tanto tempo assim, e o vendedor me garantiu que esse modelo teria um gigantesco espaço. Bem, talvez esse esgotamento precoce se dê pelo fluxo descomunal dos dados que me chegam. Fotografias, vídeos, músicas, memes, gifs, figurinhas: tudo abarrota um aparelho que, pela ideologia do dono, não é dos mais sofisticados.
Procuro ser comedido no registro de imagens e no envio delas para outros, mas sou minoria nesse jogo. Daí que, a duras penas, tento disciplinar o uso do celular e a assimilação dos conteúdos recebidos. Nunca levo o aparelho para o quarto em que durmo nem abro anexos que já identifico como apenas curiosos. Pois é sério o negócio: já me percebo mais dispersivo, desatento, ansioso e até esquecido. Memória cheia de inutilidades, claro, como a de quase todo mundo. Só não aprendi ainda como formatar a minha, apagando coisas e deixando-a livre para dados mais valiosos — como o som da voz ao vivo das pessoas amadas.
Caramba: entre mil formas de contatos virtuais e zilhões de gracinhas e bobagens, estamos esquecendo de como manter contato visual real. Não demora esquecemos de como estar junto, trocar afeto, abraçar — outra faceta vital do signo de Câncer. Convém pensar nisso, enquanto ainda temos memória do que alegra de verdade a vida.