Uma amiga comenta sua dificuldade em avançar no romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Sabe da importância do livro e do autor, ambos imensos na literatura brasileira, e de reverência obrigatória, portanto, por parte de quem ama o conhecimento, como ela. Ah, mas aquela linguagem estranha, com aquela prosódia e aqueles neologismos... Custava facilitar, ó Rosa? Custava, sim. Nonada de portas abertas para adentrar aonde reside o demasiado mistério do existir. Carece de haver alguma travessia, pois não.
Digo à minha amiga que também penei para engrenar na narrativa, tanto que comecei a leitura duas vezes, com anos de espaço entre elas, e nada. O sertão seguia fechado para mim. Até que treinei uma escuta. Isso mesmo: me deixei envolver na prosa do narrador Riobaldo, me perdendo um tantinho aqui, mas me achando logo adiante, feito quem aprende um dialeto. Quando dei por mim, tudo já era maravilhamento. E eu não tinha entrado no livro —ele é que tinha me trespassado.
Sim, o sertão é dentro da gente. Quem imagina que uma saga em torno de jagunços possa dar conta de camadas tão sutis da alma humana e de temas transcendentes como Deus e o diabo? Da cabeça de um médico mineiro de Cordisburgo brotou, em meio a tantas outras obras magníficas, esse caudal literário que contempla tanto a grandiosidade de uma paisagem cultural quanto as veredas mais insondáveis das emoções humanas. E por falar em emoções, claro que o Rosa só podia ser do aquoso signo de Câncer.
No céu canceriano de seu nascimento, a 27 de junho de 1908, estavam Sol, Mercúrio, Vênus, Marte e Netuno. “Perto de muita água, tudo é feliz”, conta Riobaldo em seu longo monólogo. As águas cancerianas simbolizam a nossa fonte nutricional primordial — das matrizes culturais aos sentimentos que brotam instintivamente de nossos recônditos da alma. E é a partir dessa fundação arquetípica que emerge a Lua no mapa do Rosa, regente de Câncer e localizada no mental signo de Gêmeos, em conjunção com o profundíssimo Plutão.
“Muita coisa importante falta nome”: eis uma expressão da tradutora Lua geminiana, afiada na nomeação dos territórios psíquicos do personagem — e dos nossos também, é claro. E Plutão confere intensidade rara a esse processo. A estranha atração de Riobaldo pelo colega de bando Diadorim, tensionada entre os ásperos códigos sociais dos jagunços e a descoberta de belezas insuspeitadas dentro e fora de si mesmo, é um dos eixos principais do romance. Ali pulsa o universal mistério do amor como força superior a tudo. E a razão sem razão dos afetos.
Diz Riobaldo: “Sou peixe de grotão. Quando gosto, é sem razão descoberta, quando desgosto, também”. Já na velhice, quando de sua longa confissão a um visitante, o ex-jagunço e agora fazendeiro tem a compreensão de que uma travessia interior se fundiu às tantas batalhas de vida e morte nos bravios sertões. Percebe que vivenciou as luzes e as sombras do próprio ser. “Natureza da gente bebe de águas pretas”, reconhece. “Coração da gente — o escuro, escuros”.
A exata palavra geminiana em Rosa, a serviço da riqueza emocional canceriana, deu no que deu — em chaves mágicas que nos abrem para os direitos e os avessos de nós mesmos. E que poesia que brota de sua peculiar linguagem! Por isso e por tanto, digo à minha amiga, este não pode ser um livro de acesso fácil, para ser usufruído em meio aos barulhos. Exige entrega, a escuta atenta de que falei. O próprio Riobaldo avisa: “Quieto; muito quieto é que a gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a gente”.