Sou apaixonada por cinema, e essa sua capacidade de simbolizar em frames o que a retina vê todos os dias, mas não compreende. Então chega a arte e estampa em cores o real, reconstruindo o imaginário portador de significados. O cinema que sempre nos confrontou com o nosso devir-animal revelando a besta que somos e esse devir-máquina, tão atual, tão cheio de Deleuze e Guattari, jogando na nossa cara o quanto temos uma mente programada. O cinema e os corpos atravessados por forças que a psicanálise tenta entender, numa luta vã com o capitalismo cognitivo, que potencializa nossa ignorância. Nossos corpos-imagens representados na lente e na tela tão demonizados, massacrados, modelados e obsoletos. Corpos-máquinas, pedaços nossos e da sociedade na qual vivemos.
Em tempos de quarentena, que parece é só para alguns, excetua-se aqui a necessidade econômica, e critica-se os negacionistas e seus corpos-sem-mente, os ocos, o cinema é uma ótima porta de entrada para o ficcional-real de nossas vidas absurdas, tal qual uma mistura bem dosada entre Ray Bradbury e Kafka. Começar a assistir a um filme equivale a nossa capacidade de abstração em abrir janelas. Ali, por algum tempo não mais nos definimos como sujeitos em nossas subjetividades, mas somos remetidos ao externo, numa problematização sobre nós mesmos, porque nos colocamos nas cenas, sentimos as dores, rimos, debochamos, e assim somos capturados pelo discurso e performance da apresentação estética da identificação biológica. Discursos esses que nos carregam de uns para os outros perfazendo um percurso de valores individuais, sociais, culturais e de gênero.
Dias atrás assisti Para sempre Alice, demorei muito tempo para vê-lo, acho que por medo de ver ali refletido um futuro possível. Alzheimer é uma doença assustadora. Toda teoria da qual percorri até aqui se transforma nesse ínterim iluminado denominado de angústia do saber (-se). Mas porque se teoriza então? Por que sem o conhecimento não há significação. Quando não sabemos os nomes daquilo que vemos ou sentimos temos uma tendência em negar e quando negamos voltamos a nossa própria pré-história, tão desbotada, cheia de buracos, sem linguagem e capacidade de expressão. Ao negar atribuo a mim mesmo a capacidade de decidir sobre o que quero ou não, acreditar. A ignorância é onipotente, despossuída de humanidade, individualidade e sentimentos. Um ser-quase-máquina, agora despotencializado e enlouquecido. Qualquer semelhança com o que estamos vendo acontecer conosco neste país e mundo é apenas mera coincidência, digamos.
O que nos diferencia das máquinas é nossa capacidade de antever futuros, conflitos, afetar e sermos afetados. Por isso, assistir filmes é permitir-se alterar a referência da realidade exterior, aparentemente tão soberana, e ver-se de dentro, sob uma outra perspectiva. Esse é um aprendizado imagético que não se dá sem medo ou sofrimento, pois é preciso plugar-se ao jogo, adentrar pelo furo canhestro da base da espinha dorsal e perceber o quanto vivemos uma existência paradoxal, atordoada e lisérgica.