No início do documentário Visita ao Inferno (2016), de Werner Herzog (disponível na Netflix), que trata da relação quase mística entre seres humanos e vulcões, o líder da aldeia Endu, localizada na Ilha Ambryn, afirma haver espíritos que vivem em meio à lava. O calor imorredouro do fogo e a raiva das explosões de magma seriam os espíritos se retorcendo no fundo da Terra e, diante das imagens hipnóticas da lava e dos seus contorcionismos preguiçosos, é difícil imaginar que não exista vida no fundo de um vulcão.
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Pensar na fúria indômita de um vulcão leva-nos a lembrar um artigo escrito por Margaret Atwood tão logo Donald Trump assumiu a presidência dos EUA. Nesse texto, publicado em The Nation e intitulado What Art Under Trump? ("Qual será a arte sob Trump?"), a autora de O Conto da Aia traça um histórico sobre as ocasiões em que a arte esteve ameaçada pelo poder constituído – e de como, mesmo cerceada, ela vicejou em meio a terrenos tão pedregosos. Mencionando a postura dos artistas que se lamentavam sobre a vitória do republicano – alguém conhecido por desprezar qualquer expressão artística –, Atwood indica escritores que, em tempos de crise, souberam usar a arte para não só definir o tempo em que viviam, como lançaram luzes para o futuro.
Com palavras que mal disfarçam a empolgação, a escritora diz que novas oportunidades se abrem para artistas: façam distopias, como Yevgeny Zamyatin; elaborem sátiras sofisticadas, como Jonathan Swift; criem "arte de testemunho", como Anne Frank ou Nawal El Sadaawi. Contudo, Atwood alerta: façam arte e não política. A arte não funciona sob o espectro monocromático de qualquer mensagem política; ela existe para desconstruir o mundo ao invés de transmitir ideologias. Os artistas cujas obras sobreviveram não foram os que melhor denunciaram as mazelas sociais, mas quem soube usar a arte como pano de fundo de um anseio humano que atravessa os tempos, não só o imediatismo do dia seguinte.
O texto de Margaret Atwood serve como admoestação não apenas para os artistas que vivem sob a égide de Trump, mas para todos. Usar a arte com um propósito, seja ganhar dinheiro ou status, seja passar uma mensagem social, religiosa ou política, é a garantia de que a expressão artística pode até ser consumida pelo público, mas não digerida. Despertará fagulhas, jamais a chama duradoura de uma reflexão. Nunca isso foi tão evidente quanto nos tempos atuais, quando se percebe artistas mais preocupados em passar mensagens ideológicas – aqui no seu sentido mais amplo – do que em realizar uma obra consistente, algo que redimensione o universo alheio ao invés de desaparecer como se nunca tivesse existido.
Ezra Pound afirma que a função da literatura não é a de coagir, persuadir emocionalmente ou forçar as pessoas a aceitarem ou deixarem de aceitar outras opiniões, mas manter a clareza e o vigor de todos os pensamentos e opiniões. Usar a arte para impor uma visão de mundo é fazer com que ela não seja arte, mas uma simples chateação que logo passará. O verdadeiro artista não é aquele que denuncia a destruição da lava ou o avançar do fogo, mas quem está no fundo do vulcão, retorcendo-se com desconforto enquanto sonha com o céu coalhado de estrelas infinitas revelado pela boca da cratera.