As festas em 2015 pelos 70 anos do episódio que representou a supremacia das luzes sobre as trevas receberam a devida solenidade. Em 8 de maio de 1945, os aliados derrotaram o nazismo em nome da liberdade e da democracia, quase um ano depois do "Dia D" (a invasão da Normandia, em 6 de junho de 1944). Em Buenos Aires, cidade que abriga a maior comunidade judaica latino-americana, foi erigido um monumento às vítimas do Holocausto, no clima da efeméride. A então presidente argentina, Cristina Kirchner, entregou a representantes da comunidade judaica a ordem para construção do monumento na esquina das avenidas Bullrich e Libertador, no bairro Palermo - o local é conhecido como Plaza de la Shoá (Shoá é Holocausto em hebraico). O principal símbolo, porém, apropriadamente não é de pedra. É de carne e osso.
Ao entregar a ordem de construção, Cristina deparou com uma sobrevivente do arbítrio, no velho e no novo mundo. Sara Rus, 87 anos, é todo um símbolo. Nascida na cidade polonesa de Lodz, filha única, testemunhou o inferno em dois atos, duas épocas e dois continentes. Primeiro, era Schejne Laskier e morava com os pais. Foi levada em julho de 1944 para o campo de extermínio de Auschwitz. Depois, no segundo ato, já era Sara Rus e estava em Buenos Aires, onde formou uma nova família. Em 15 de julho de 1977, o físico nuclear Daniel Rus, seu filho, que faria 27 anos nove dias depois, foi sequestrado por agentes do regime militar. Sara, hoje uma "mãe da Praça de Maio", nunca mais viu o primogênito, hoje um nome na lista dos desaparecidos da ditadura que pôs a Argentina na obscuridade entre 1976 e 1983.
- É uma emoção muito forte, depois de tanta dor e sofrimento. Trata-se de uma recompensa e uma emoção indescritíveis, um monumento para cuidarmos da nossa memória - disse Sara, a respeito da obra que começa a ser erguida pelos arquitetos Sebastián Marsiglia e Gustavo Nielsen, vencedores em 2009 do concurso para a elaboração da escultura, cuja previsão é de sete meses para a conclusão.
E é de memória que Sara fala. Com urgência. Para perenizá-la.
- Prometi a mim mesma: viveria para contar minha história - diz.
Na Europa, Sara perdeu o pai, o avô e os dois irmãos ainda bebês (um deles executado pelos nazistas logo após ter nascido). Tinha de usar a estrela de David estampada no peito quando ainda vivia no gueto de Lodz. Roubava comida para sobreviver. Chegou a ter 27 quilos. Foi submetida a trabalho escravo. Tocava violino até que um soldado nazista o espatifou numa mesa. Buscava leite para os irmãos, um dos quais morreu faminto aos três meses, porque a mãe, acometida de tifo, não podia amamentar, conta:
- Em Auschwitz, os nazistas nos levaram a uma praça, onde fizeram uma seleção. Nos separaram dos homens. Nunca mais vi meu pai.
Também foi lá na Polônia que ela conheceu Bernardo Rus, o homem que prometeu, numa carta, casar-se com ela na Argentina - onde ambos chegaram em 1948 e foram acolhidos pela então primeira-dama Evita Perón, apesar das restrições do governo de Juan Domingo Perón, com aspectos tipicamente fascistas, à imigração de judeus.
- Fomos pela fronteira com o Paraguai. Éramos 10 pessoas em um barco. Ninguém falava espanhol. Chovia. Um policial, a cavalo, nos acudiu. Ele e sua mulher nos deram de comer. No dia seguinte, nos conduziu até a prisão. Diziam que iriam nos devolver ao Paraguai. Queríamos ir para Buenos Aires. Meu marido teve uma ideia: soubera que Evita ajudava as pessoas. Mandou uma carta para ela, contando nossa história em polonês. Alguém traduziu para Evita. Dias depois, ela nos mandou documentos para irmos a Buenos Aires.
O filho Daniel nasceu em 24 de julho de 1950, apesar de, ainda na Europa, terem diagnosticado que, em razão dos sofrimentos físicos, não poderia ter filhos. Cinco anos depois, Sara deu à luz Natalia - mãe de suas duas netas. Às 14h30min de 15 de julho de 1977, Daniel foi preso na porta do prédio da Comissão Nacional de Energia Atômica, onde trabalhava, e levado numa caminhonete. Nunca mais apareceu.
- Certa vez, me vi gritando seu nome na sacada da nossa casa - recorda ela, voz embargada, lembrando o filho que era leitor voraz e até falava iídiche.
Bernardo, o marido de Sara, novamente foi profético. Disse que na volta da democracia, caso Daniel não reaparecesse em meio ano, preferia morrer. E assim foi. Morreu em 2 de maio de 1984, meio ano depois da posse do presidente Raúl Alfonsín. De câncer.
O monumento
O monumento às vítimas do Holocausto, nas palavras do secretário argentino da Cultura, Jorge Coscia, "é uma reivindicação pela paz, em uma demonstração de que a sociedade argentina não se esquece das vítimas e segue no caminho que busca a memória, a verdade e a justiça".