Sebastopol, Crimea – Mais de três anos depois de a Rússia ter tomado a Crimeia da Ucrânia, a península está passando por uma longa temporada de descontentamento.
Sombriamente, os burocratas nomeados pelo Kremlin estão demonstrando ser tão corruptos e ineptos quanto os antecessores ucranianos. As sanções internacionais, impostas nos dias ainda nebulosos logo após a anexação russa, aumentaram os preços dos alimentos enquanto complicaram indefinidamente aspectos da vida cotidiana, como transações bancárias e viagens.
Talvez o mais irritante para os crimeus, o governo está levando milhares de moradores para o tribunal para confiscar pequenas propriedades distribuídas gratuitamente como uma estratégia de campanha em 2010, quando Ucrânia controlava a península do Mar Negro.
Residentes de Sebastopol, famosa como histórico campo de batalha e sede da frota do Mar Negro, estavam entre os militantes mais fervorosos a favor da Rússia quando esta anexou a Crimea.
Isso foi antes.
"Eu apoiei a reunificação porque pensei que, com a chegada da Rússia, as coisas iriam melhorar", disse Lenur A. Usmanov, um raro e franco partidário do Kremlin da minoria Tatar que se tornou um manifestante ativo. "Mas não há mudança."
Yevgeny V. Dzhemal, advogado ativista que combate a expropriação em massa, explicou de forma ainda mais sucinta: "Eles também eram segunda classe sob a Ucrânia. Nada mudou".
As Nações Unidas publicaram um relatório recentemente acusando as agências de segurança russas de cometer "graves" abusos dos direitos humanos desde a anexação. Muitos desses abusos ocorreram imediatamente após a anexação contra aqueles que eram oposição. A Rússia desqualificou o relatório, afirmando que contém invenções "absurdas" espalhadas por seus oponentes.
Os habitantes locais se concentram em diferentes queixas. Eles definem pejorativamente os novos burocratas como aventureiros políticos, usando o termo "varyagi" em russo, uma palavra antiga para vikings estrangeiros, particularmente quando se trata de confisco de terras.
A cidade de Sebastopol afirma que deve recuperar pelo menos 10 mil terrenos para ajudar a criar um plano de desenvolvimento. Os proprietários gritam que a "apropriação de terra em massa" beneficiará investidores desonestos e autoridades que cobiçam pedaços de terra que se estendem até a praia.
"Ninguém pensou que seria tão ruim, com questões emergindo de repente como esta dos terrenos", disse Roman Kiyashko, o candidato forte do Partido Comunista para governador cujo slogan da campanha, "O seu homem de Sebastopol", enfatiza suas raízes nativas. "Funcionários russos agem como um elefante em uma loja de porcelana. Eles apenas impõem suas políticas sem se preocupar com o feedback."
No entanto, muitos nativos enfatizam que suas queixas não os levam ao ponto de reconsiderar o referendo internacionalmente criticado de 2014 em que votaram esmagadoramente para se juntar à Rússia. "As pedras podem cair do céu enquanto vivemos em nossa pátria", disse Oleg Nikolaev, empresário de sucesso da restauração, citando uma expressão russa.
A retomada forçada da Crimeia em 2014 foi celebrada em toda a Rússia, uma vez que houve a restauração do poder do país que há muito estava perdida. Isso fez com que o presidente Vladimir Putin se popularizasse, algo que o Kremlin esperava aproveitar quando agendou a próxima eleição presidencial para 18 de março, o quarto aniversário da anexação formal da Crimeia.
Para muitos, no entanto, a euforia em torno dessa data já acabou.
Em Sebastopol, o principal alvo da ira local é Dmitri Ovsyannikov, 40, de uma nova geração nacional de jovens governadores. Nomeado governador interino por Putin no ano passado, ele afastou muitos funcionários nativos preenchendo praticamente todas as vagas administrativas com pessoas vindas de Moscou. Mesmo algumas autoridades locais que apoiam Putin se perguntam em particular porque o presidente escolheu alguém tão distante.
Ovsyannikov conseguiu ganhar uma eleição rara para seu posto em setembro. Mas os analistas atribuíram isso a uma triste participação de pouco menos de 33 por cento do eleitorado e ao fato de Putin ter feito campanha para ele.
Sebastopol tem uma longa história de políticas frágeis, mas recentemente os conflitos aumentaram de forma marcante, disse Volodymyr P. Kazarin, reitor de universidade e ex-vice-governador que se opôs à anexação, quando se mudou para Kiev, na Ucrânia. "Sebastopol está mais uma vez entre as cidades mais rebeldes da Crimeia", disse ele.
Após a anexação, a Crimeia foi dividida em dois distritos, com a maior área metropolitana de Sebastopol designada como uma cidade federal, enquanto o resto da península se tornou a República da Crimeia, uma província russa com autonomia extra. Ressentimentos semelhantes aos de Sebastopol eclodiram também na República.
Em Yalta, um confisco de terras acabou em tragédia depois que o antigo proprietário de um café à beira-mar descobriu que a construção havia sido demolida e o contrato do local atribuído a um investidor anônimo. Ele cometeu suicídio incendiando-se em um parque da cidade em setembro de 2016.
Oligarcas e outros empresários ricos, na sua maioria ucranianos, perderam bilhões de dólares em imóveis expropriados após a anexação. Mas a luta da terra em Sebastopol parece afetar principalmente as pessoas comuns, como professores aposentados e veteranos da marinha.
A cidade já abriu 3.800 ações judiciais e deve abrir outras mais, algumas possivelmente envolvendo propriedades militares soviéticas abandonadas há muito tempo. "Representantes das agências governamentais apenas riem de nós", disse Lubov Zvonik, 60, gerente de loja aposentado. "Eles têm uma atitude indescritível em relação a nós, porque há ordens de cima para tomar a nossa terra."
Sebastopol já foi um centro das indústrias de defesa da nação. Mas após o colapso de 1991 da União Soviética, as fábricas fecharam e a terra permanece o único recurso significativo para a cidade, disse Nikolaev, o empresário.
Algumas das terras confiscadas "serão oferecidas para concorrência entre investidores, algumas serão mantidas como áreas protegidas", afirmou.
Enquanto o confisco de terra é o principal problema, os residentes de Sebastopol têm ainda uma lista de queixas.
Eles dizem que os empregos do governo se tornaram uma licença para roubar ou extorquir, com levas de funcionários em toda a Crimeia demitidos por corrupção ou incompetência, mais do que sob a Ucrânia. A Rússia está despejando dinheiro na península – US$ 650 milhões no ano passado – e a escala da corrupção se expandiu de acordo com o valor, disseram especialistas.
As sanções são outra fonte constante de irritação, levando ao aumento dos preços de alimentos e complicações bancárias, na agricultura, transporte e obtenção de vistos para viajar para o exterior. Com medo de repercussões internacionais, nenhuma grande rede de supermercados russa, banco ou outra empresa se instalou por lá desde a anexação.
A maioria dos produtos tem que ser importada pela malha ferroviária não confiável, elevando os preços.
Por causa da história militar de Sebastopol, seus moradores se orgulham de ser um pouco mais russos do que o resto do país. Talvez Liev Tolstói foi quem capturou esse humor em "Crônicas de Sebastopol", quando refletiu sobre suas experiências como um jovem oficial durante a Guerra da Crimeia de 1853 a 1856.
"Ao pensar que você também está em Sebastopol, um certo sentimento de masculinidade, de orgulho", penetra sua alma, e seu sangue começa a "fluir mais rapidamente através de suas veias", escreveu ele.
Daí alguns acharem irritante que autoridades externas tenham começado a adulterar a história em uma cidade onde quase todas as principais praças ou avenidas são nomeadas em homenagem a uma batalha ou herói militar.
O Kremlin adotou recentemente a proposta de um grupo de nobres expatriados para erigir um monumento à reconciliação na cidade, já que a Crimeia é onde a aristocracia russa e o Exército Branco fizeram sua última resistência após a revolução de 1917.
A ideia ganhou apoio local. No entanto, muitos resmungam que uma cidade de 418 mil pessoas – incluindo numerosos descendentes de soldados do Exército Vermelho – e 2 mil monumentos não precisam de mais um.
"Esta é uma cidade heroica, uma cidade de guerreiros, e um guerreiro não deve conciliar", atacou Kiyashko, o líder comunista local, na sede do partido.
Os males econômicos e a constante intromissão de Moscou fazem mesmo os altos funcionários do governo reconhecer uma desilusão generalizada que lembra os dias ucranianos. O Kremlin foi muito rápido em tratar a Crimeia como o resto do país, apesar de sua longa e traumática história, disse o oficial.
"Muitos crimeus estão infelizes com o fato do centro da federação russa estar triturando tudo e dizendo que somos como todos os outros. Nós sofremos sozinhos, e agora alguém vem nos dizer como viver?", disse Kiyashko.
Por Neil McFarquhar