O ocaso da "onda rosa" esquerdista e o avanço de uma linhagem mais conservadora nos comandos dos países sul-americanos são realidade já comprovada. Em meio a todo esse fenômeno que rompe a hegemonia progressista surgida no final do século passado, o Peru remete a uma espécie de caricatura. Além de estar terminando o governo do presidente centro-esquerdista Ollanta Humala, quem se insinua como vencedora no segundo turno deste domingo é Keiko Fujimori, filha do polêmico ex-ditador Alberto Fujimori (1990-2000).
Tida como "populista de direita", Keiko enfrenta o centro-direitista Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK, e está à frente nas pesquisas. A disputa de segundo turno começou equilibrada, mas a filha de Fujimori tratou de percorrer o interior do Peru. Fortaleceu o partido Força Popular e conseguiu conquistar a maioria absoluta no parlamento (73 de 130 congressistas). De um lado, ela tentou se afastar da visão deixada pelo pai como governante autoritário, condenado por corrupção. De outro, paradoxalmente, aproveita-se do capital político paterno, que estendeu a mão protetora a algumas camadas da população e enfrentou com rigidez o terrorismo do Sendero Luminoso. Isso faz com que haja seguidores e rejeição em igual medida.
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O discurso de Keiko, 41 anos, é o da reconciliação nacional, em um país que ostentou crescimento anual de 6% entre 2006 e 2013, mas teve queda para 2,4% em 2014, subindo novamente para 3,2% em 2015.
– Tenho força para trabalhar por um país reconciliado – diz ela.
O economista Kuczynski, que já foi ministro da Economia e funcionário do Banco Mundial, pautou sua campanha pelo conhecimento e pela experiência acumulados em 77 anos de vida.
– Precisamos de um piloto experiente para levar este avião que passa por céus turbulentos – enfatiza.
PPK também criticou Keiko por ter exercido o papel de primeira-dama no governo de seu pai. Sempre que pôde, lembrou que Fujimori foi condenado por corrupção e crimes contra a humanidade. Nessa linha, pôs a adversária como "ameaça à democracia".
Radicado na Espanha, o historiador Carlos Malamud, um dos maiores especialistas de América Latina na Europa, não vê muitas diferenças entre os candidatos em termos econômicos.
– A situação econômica do Peru, independentemente de quem vença as eleições, pouco muda. Será sustentável, baseada nos minerais (ouro, prata, cobre, zinco, estanho e chumbo) – diz Malamud, que vê o fujimorismo como um movimento que se mantém por ter derrotado o Sendero Luminoso e posto fim à inflação que havia antes.
As manifestações de rua, porém, dão ideia da rejeição de parcela da população ao fujimorismo. Milhares de pessoas protestaram na terça-feira, no centro de Lima, contra Keiko, gritando "Keiko não". Algumas mulheres tingiram roupas brancas de vermelho para simular o sangue das indígenas esterilizadas à força pelo governo fujimorista. Uma das pessoas que estavam à frente dos protestos era a esquerdista Verónika Mendoza, terceira colocada no primeiro turno e agora apoiadora de PPK. Apesar do perfil de centro-direita e liberal na economia, PPK acabou sendo líder de uma frente unindo ONGs, intelectuais e políticos. Todos contra Keiko.
– O importante é impedir o retorno do fujimorismo ao poder – resumiu a socialista Verónika para justificar o apoio inusitado ao candidato que se diz "de centro", mas "representante do empresariado e do mercado livre".
Depois, ela enfatizou que o apoio é apenas eleitoral e ressalvou:
– No dia seguinte (à posse de PPK), começaremos uma oposição crítica.
Com os protestos nas ruas, os observadores se dividem. O analista Arturo Maldonado, do jornal El Comercio, acredita que a rejeição ao fujimorismo já atingiu seu teto. Para ele, só haverá a troca do prenome Alberto por Keiko, porque o fujimorismo estará de volta sem muitas diferenças, com a mesma "base política" e o mesmo perfil "autoritário, de mão de ferro, clientelista e populista", em especial "se o governo começar a perder popularidade e apoios". Manuel Saavedra, diretor do instituto de pesquisas CPI, acredita que as manifestações e os apoios recebidos por PPK até de tradicionais adversários esquerdistas têm encurtado a diferença, e isso pode reverter um quadro em que, entre 23 milhões de eleitores, há algo como 20% de indecisos. Pesquisa do CPI feita entre 31 de maio e 1º de junho mostra Keiko com 51,6% e Kuczynski com 48,4%. Em 24 de maio, o mesmo instituto mostrava diferença de 54,8% a 45,2% em favor de Keiko.
Nota do CPI, de quinta-feira, faz a ressalva de que "a pesquisa não mede plenamente o apoio que quase a totalidade de partidos políticos deram ao candidato de Peruanos Pela Mudança (de PPK)", o que, de acordo com o instituto, poderia provocar ainda alguma alteração nos três dias anteriores à votação deste domingo.
Em meio a um debate tão intenso, passam ao largo algumas curiosidades. Keiko é chamada de "Chinesa", e PPK, de "Gringo". Da paternidade de Keiko, todos sabem. PPK descende de europeus e tem parentesco com o cineasta francês Jean-Luc Godard e a atriz americana Jessica Lange. O pai sobreviveu ao Holocausto.
Memórias do horror
O ex-presidente Alberto Fujimori (1990-2000), pai de Keiko, está preso desde 2007 e condenado a 25 anos de prisão por crimes de lesa-humanidade e corrupção. Autor de um "autogolpe" ao fechar o Congresso e pôr o país em estado de sítio em 1992, é acusado, ainda, de ter promovido esterilização forçada de mulheres indígenas.
Além das manifestações de rua e dos apoios ao candidato adversário de Keiko Fujimori, a campanha antifujimorista ganhou peso nas redes sociais. O cineasta Fernando Vilchez divulgou o documentário Seu nome é Fujimori, no qual relembra o autogolpe de 1992, os famosos vladivídeos (em que o ex-assessor presidencial Vladimiro Montesinos negociava acordos com empresários e políticos) e violações dos direitos humanos. A pesquisadora Alejandra Ballón lançou o livro Memórias do caso peruano de esterilização forçada.
Ainda que seja uma situação muito melhor que os 58,7% de 10 anos atrás, o Peru tem índice de pobreza que chega a quase um quarto da população: 22,7%.