Antes dos Jogos Olímpicos se iniciarem a apenas 290 quilômetros de distância, as forças de segurança da Rússia apareceram na rua Mákhov, na cidade de Baksan, às 8h30min, e isolaram a área em torno de uma casa de tijolos e pedra. Dentro da casa, um dos homens chamou seu pai, que disse ser a primeira vez em 10 meses que tinha notícias do filho.
- Ele disse: 'papai, estamos cercados. Eu sei que eles vão nos matar' e, então, disse adeus - contou o pai.
Os russos e os homens que estavam dentro da casa trocaram tiros, fazendo pausas apenas para permitir que uma mulher e duas crianças saíssem da casa. Quando o tiroteio terminou, à tarde, quatro homens que estavam no interior da casa haviam morrido, de acordo com relatos oficiais. Em seguida, os russos explodiram a casa, deixando uma pilha ensanguentada de escombros e uma multidão de vizinhos furiosos e intratáveis.
Pela primeira vez na história, os Jogos Olímpicos serão realizados perto de uma zona de guerra. O conflito é um dos mais antigos do mundo: uma batalha obscura, mantida em fogo brando, entre militantes cada vez mais radicais que operam nas sombras da sociedade e uma força de segurança que pode ser brutal, mesmo quando se revela letalmente eficaz.
A importância simbólica dos jogos para a Rússia e para o presidente Vladimir Putin transformou Sochi em um alvo tentador para os terroristas islâmicos que juraram realizar uma onda de atentados para levar adiante o seu objetivo de estabelecer um califado independente em todo o Norte do Cáucaso.
A ameaça motivou o Kremlin a montar o que autoridades e especialistas têm descrito como a mais ampla operação de segurança da história dos eventos esportivos, isolando a cidade e conduzindo durante meses ações como essa para esmagar células militantes em uma região que se estende do Daguestão, no Mar Cáspio, até Sochi, no Mar Negro, usando táticas que, segundo os críticos, apenas incitam mais violência.
- O que está acontecendo é assustador: a aniquilação total de nosso jovens. Todo mundo está com medo. Todo mundo está fugindo. Alguns vão para Moscou e outros, para ainda mais longe. As pessoas começam a se proteger de coisas assim - disse o pai, concordando em falar apenas sob a condição de anonimato por temer represálias.
Os Jogos Olímpicos voltaram a chamar atenção para o terrorista mais procurado da Rússia, Doku Umarov, e para as ameaças de atentados orquestrados por fanáticos, como os que ocorreram em Volgogrado, quando homens-bomba mataram 34 pessoas em dezembro passado com um ataque a transportes de massa. Porém, as guerras na Rússia costumam assumir a forma dos eventos ocorridos em locais como Baksan. Rustam Matsev, advogado da república Kabardino-Balkaria, chamou o que está acontecendo de "guerra civil em câmera lenta".
Mesmo que a Rússia consiga garantir a segurança em Sochi, a violência certamente continuará aqui no Cáucaso quando a atenção internacional se voltar para outros problemas. Essa violência é alimentada pela ideologia niilista da jihad internacional e pontuada por atentados terroristas fora da região que, segundo especialistas, a Rússia, assim como outros países, nunca será capaz de combater completamente.
- Não é preciso muito para se fazer esses atentados. Basta um jihadista comprometido e uma bomba, que é bem barata, e pode ser feita em casa. É difícil lidar com essas pessoas - disse Ekaterina Sokirianskaia, diretora do projeto do Norte do Cáucaso para o International Crisis Group.
Em 2013, a violência entre militantes e as forças de segurança russas deixou 529 mortos no Norte do Cáucaso, de acordo com uma lista elaborada pelo site de notícias Caucasian Knot que não inclui os atentados de Volgogrado, uma cidade situada mais ao norte. Dos mortos registrados no ano passado, 127 eram agentes de segurança russos, um número de vítimas que não fica longe dos 160 soldados que morreram durante o mesmo período na guerra travada pela Otan no Afeganistão.
O nível de violência diminuiu significativamente desde que dezenas de milhares de pessoas morreram durante as duas guerras da Rússia contra os separatistas da Chechênia, que chegaram a pensar que o colapso da União Soviética, em 1991, viria a abrir caminho para a independência da república. A segunda guerra, sob a liderança de Putin, durou 10 anos, mas esmagou os rebeldes e obrigou os comandantes chechenos a entrarem para a clandestinidade ou a irem "para a floresta".
Lá, eles transformaram gradualmente a causa da independência da Chechênia em um objetivo mais amplo e radical, o da guerra santa, que tem pouco apoio popular, mas que, ainda assim, tem atraído adeptos por toda a região.
A Chechênia já não é nem mesmo a república mais mortífera da região, de acordo com o Caucasian Knot, tendo sido superada em número de mortos e feridos no ano passado por alguns de seus vizinhos, mais especificamente o Daguestão, que atualmente é a região mais perigosa da Rússia, a Inguchétia e Kabardino-Balkaria.
- Não há nenhuma organização de fato lá. Há pessoas conectadas em rede - disse Mark Galeotti, especialista em forças de segurança da Rússia da Universidade de Nova York que atualmente está realizando pesquisas em Moscou.
Ele, por exemplo, expressou dúvidas quanto a Umarov já saber com antecedência dos atentados em Volgogrado, apesar de uma célula previamente desconhecida do Daguestão ter assumido a responsabilidade pela ação em janeiro, informando que estava levando adiante a ameaça feita no verão passado de atacar os Jogos.
Como mostraram os ataques em Volgogrado, os insurgentes ainda são capazes de realizar ataques suicidas espetaculares e mortais contra alvos "fáceis", como trens, estações e ônibus - se não quando bem entendem, pelo menos com uma regularidade impressionante. Embora os atentados no Cáucaso tenham muitas vezes como alvo operações de segurança russas, aqueles realizados fora da região parecem destinados a tornar o terror ainda maior ao mirar civis. De acordo com os especialistas, ataques como esses durante as Olimpíadas são mais prováveis do que um atentado em Sochi.
Embora os atentados suicidas sejam uma tática recorrente desde a segunda guerra da Chechênia - dando vida à lúgubre mitologia das "viúvas negras", mulheres que vingam a morte de seus maridos, pais, irmãos ou filhos -, a motivação por trás deles mudou, de acordo com Sokirianskaia. Segundo ela, hoje essas mulheres são movidas menos por um objetivo político claro do que pela busca do martírio e da recompensa celestial.
Paradoxalmente, a visão mais radicalizada de uma insurgência islâmica tem pouco apelo entre a maioria das pessoas que vivem na região. O culto do martírio não existe aqui - exceto online. Apesar de a região ser de maioria muçulmana, poucos parecem apoiar o separatismo ou a imposição de uma forma explícita de governo islâmico.
As ações dos agentes de segurança russos, no entanto, alimentam o ressentimento, assim como as tensões étnicas e o empobrecimento. Na capital de Kabardino-Balkaria, Nalchik, uma sensação de privação de direitos resultou em um levante contra as forças de segurança da Rússia em 2005 que resultou em 135 mortes.
- As pessoas não os apoiam ativamente, mas elas não oferecem resistência. Elas não confiam nas estruturas de segurança. Elas não confiam na polícia - disse Murat Khokonov, professor de Física na Universidade Estadual de Kabardino-Balkaria, a respeito de uma das redes de insurgentes.
Nos jogos de Sochi, até mesmo a Olimpíada, retratada por autoridades e pelos meios de comunicação oficiais como uma celebração unificadora do retorno do país ao cenário mundial, é vista com ambivalência por aqui. O monumental percurso feito pela chama olímpica, um evento encenado que passou pelo Polo Norte e pela Estação Espacial Internacional, foi bem mais discreto ao passar pelo Cáucaso, onde visitou apenas estádios com segurança reforçada, incluindo os que se situam no Daguestão, na Chechênia e em Nalchik.
Muitos dos grupos étnicos da região do Cáucaso têm relação com os circassianos, que consideram Sochi parte de sua terra natal, conquistada pelos russos no século 19, após uma ação que os ativistas atuais esperam divulgar como um ato de genocídio.
Valery Khatashukov, o presidente do Centro de Direitos Humanos de Nalchik, disse que a Rússia atiçou ressentimentos ao continuar a tratar a região como uma colônia a ser conquistada. Em vez de realizar eleições, o Kremlin de Putin simplesmente nomeia os líderes, privando as pessoas de seus direitos.
Matsev, o advogado, fez ressoar a ambivalência da situação que envolveu o marido de Tlyepsheva. Ela não apresentou resistência à polícia, mas também não apoiou a rebelião.
- É como um casamento infeliz em que não existe a possibilidade de divórcio. Há coisas demais em comum para que ocorra o divórcio - os laços são muito próximos -, mas, ao mesmo tempo, aconteceram tantas coisas que as partes não conseguem ser felizes juntas - concluiu ele.