Alguns moradores retornam às residências esporadicamente para manter o vínculo com o local. Foto: Tomas Munita/NYTNS
Todo mês, Hiroko Watabe, de 74 anos, volta por poucas horas a sua casa abandonada, perto da usina nuclear de Fukushima, para realizar seu pequeno ato de rebeldia frente ao destino. Ela coloca uma máscara cirúrgica, pendura dois aparelhos de medição de radiação no pescoço e se agacha para arrancar ervas daninhas.
Ela está desesperada para manter seu pequeno jardim limpo, a fim de provar que não desistiu da própria casa, que teve que abandonar com a família há dois anos, depois que um terremoto de magnitude 9, seguido de um tsunami, atingiu a usina a quilômetros de distância. Nem todos os seus vizinhos estão dispostos a correr o risco que ela corre: no momento, um alto matagal cobre e entrada das residências, outrora tão bem cuidadas.
- No fundo, sei que nós nunca mais teremos como morar aqui. Mas fazer isto nos dá um propósito. Estamos dizendo que esta casa ainda é nossa - disse Hiroko, que deixou a cidade de Koriyama, onde agora vivem, com seu marido.
Enquanto o contínuo desastre ambiental da usina de Fukushima Daiichi ainda figura nas manchetes de jornais de todo mundo, fazendo lembrar que centenas de toneladas de água contaminada estão seguindo para o Oceano Pacífico diariamente - uma crise tem se desenrolado silenciosamente entre a população. Dois anos e meio depois que a usina expeliu nuvens de materiais radioativos sobre o nordeste do Japão, os quase 83 mil moradores retirados das áreas mais atingidas ainda não podem voltar para casa. Alguns deles se mudaram, não sem relutância, mas dezenas de milhares permanecem em um limbo jurídico e emocional, enquanto o governo mantém a esperança de que eles possam retornar um dia.
Enquanto aguardam, muitas dessas pessoas têm se sentido cada vez mais amarguradas. A maioria apoiou a meta oficial de descontaminação das cidades para que as pessoas possam voltar para as suas casas, onde algumas famílias moram há gerações. Agora, suspeitam de que o governo sabe que essa operação de limpeza, sem precedentes, levará anos, se não décadas a mais do que o prometido, como tem alertado um número cada vez mais alto de especialistas independentes, mas que não admite o fato por receio de acabar com os planos de reativar outras usinas nucleares no Japão.
Isso deixou a população de Namie e outras 10 cidades que foram evacuadas com poucas alternativas. As pessoas podem continuar a morar em alojamentos temporários apertados, recebendo uma pequena remuneração mensal do governo. Ou podem tentar construir uma nova vida em outro lugar, o que é quase financeiramente impossível para muitas delas, a menos que o governo admita a derrota e as compense pela perda das casas e meios de subsistência.
- O governo nacional ordena que a gente volte, mas em seguida diz que temos que esperar e esperar - conta Tamotsu Baba, o prefeito dessa cidade de 20 mil pessoas, retiradas às pressas quando as explosões começaram a danificar a usina.
- Os burocratas querem evitar assumir a responsabilidade por tudo o que aconteceu, e nós cidadãos pagamos o preço. -
Para os moradores de Namie, a obscuridade do governo não é nada nova. No dia em que deixaram o local, os burocratas de Tóquio sabiam que a decisão que estavam tomando poderia ser perigosa, com base em modelos de computador, mas decidiram não alertar as pessoas para não causar pânico. Os moradores da cidade foram levados para o norte, direto para uma nuvem radioativa invisível.
Antes de as pessoas partirem, Namie era uma comunidade de agricultores e pescadores, que se estendia entre as montanhas e o Pacífico. Hoje ela se divide em seções com códigos de cores que denotam a gravidade de contaminação das áreas e quanto tempo os moradores podem permanecer em visitas limitadas durante o dia. Os cidadãos passam por medidores ao entrar e ao sair. Perto de um posto de checagem, uma sinalização chama atenção para as vacas que vagam livremente desde que os donos as libertaram ao deixar a cidade.
Após se passar pelos postos de controle interno, vê-se que Namie é hoje uma cidade fantasma, de ruas vazias, repletas de lixo e ervas daninhas, algo incomum no Japão, conhecido por ser tão bem cuidado. Algumas casas tradicionais de madeira sobreviveram ao terremoto, embora não tenham sobrevivido à negligência. Elas desabaram por conta de infiltrações causadas pela chuva, que fizeram apodrecer as vigas antigas. É possível ver ainda telhas espalhadas nas estradas.
Por trás das vitrines, ainda podem ser vistas, espalhadas no chão, mercadorias que caíram das prateleiras no terremoto. Na prefeitura, os calendários continuam abertos em março de 2011, quando o desastre aconteceu.
As autoridades retomaram uma das colunas do prédio para montar um Gabinete Preparatório de Retorno à Cidade, apesar de seus poucos passos até agora terem sido instalar banheiros portáteis e designar guardas para impedir saques. O governo federal espera, eventualmente, implantar um exército de trabalhadores na cidade para a raspagem de toneladas de solo contaminado. Contudo, as autoridades se depararam com um obstáculo: elas encontraram apenas dois locais da cidade onde podem armazenar lixo tóxico; seriam necessários 49.
Ainda em setembro, o governo admitiu que tais obstáculos tinham feito com que a operação de limpeza se atrasasse bastante em oito das 11 cidades cuja higienização eles haviam prometido originalmente até o próximo mês de março. Até mesmo nos locais onde a limpeza já começou, outros problemas surgiram. A raspagem do solo não foi propriamente bem-sucedida como método para reduzir os níveis de radiação, em parte porque a chuva traz mais contaminantes das montanhas situadas nas proximidades.
Agora, o Ministério do Meio Ambiente diz que o término da limpeza nas oito cidades, incluindo Namie, foi adiado, e que a nova data ainda não foi definida.
Em Namie, uma pesquisa da prefeitura mostrou que 30% dos moradores tinha desistido de recomeçar a vida na cidade; 30% não tinham desistido e 40% ainda não sabiam ao certo.
As visitas de Watabe têm sido emocionalmente dolorosas e assustadoras. Ela diz que a concessionária de carros do marido foi roubada. Seu quintal foi invadido por um javali, que ela conseguiu afugentar. Ela contou considerar a capinagem da garagem da sua casa tão arriscado que dispensou uma visitante que se ofereceu para ajudar, mostrando a ela um dosímetro com leituras 150% maiores do que o nível que normalmente forçaria uma evacuação.
Ela relembrou da comunidade com a qual convivia, antes bastante unida, na qual os vizinhos costumavam se divertir conversando e tomando chá. Ela criou os quatro filhos aqui, e os seus 10 netos costumavam visitá-la regularmente; os bichos de pelúcia e brinquedos dos bebês ainda estão em meio a detritos no chão da concessionária.
O filho mais novo de Watabe, cuja própria família tinha compartilhado a casa, e justamente aquele que deveria assumir os negócios da família, disse que nunca mais vai voltar. Ele optou por se mudar para um subúrbio de Tóquio, temendo que até mesmo o mínimo de contato com Namie faça com que as duas filhas pequenas passem pelo mesmo tipo de discriminação enfrentado pelos sobreviventes das bombas de Hiroshima e Nagasaki.
- Os jovens já desistiram de Namie. Só as pessoas idosas querem voltar - disse Watabe.
Perto da entrada da sua casa de fazenda de três séculos atrás, Jun Owada, de 84 anos, varria o chão, tirando as fezes dos camundongos que chegaram quando ela saiu. Ela havia voltado naquele dia para fazer um rito de luto tradicional, lavando o túmulo do marido que morreu antes do terremoto.
Ao contrário do casal Watabe, ela resolveu seguir em frente e está morando com o filho em uma área residencial no entorno de Tóquio, mesmo que volte para honrar um passado que tem procurado deixar para trás. Toda vez que visita a antiga casa, contou ela, recebe uma dose equivalente a uma ou duas radiografias de tórax, ainda que permaneça dentro de casa. Enquanto varria, apontava para coisas que não conseguia consertar.
Os suportes dos socalcos se dilataram, e apesar de as grossas vigas de madeira da sua casa terem se mostrado mais resistentes do que as de seus vizinhos, elas também estão começando a apodrecer.
- Basta olhar ao redor rapidamente e sabemos imediatamente que não há como voltar para cá - disse.