Wang Xue, 53 anos, estava em pé no meio do quintal de casa, ao lado de uma romãzeira. Poderia ter sido uma cena saída de um poema da dinastia Tang, exceto pelo som de uma britadeira e a camada de pó de construção recobrindo finamente as fileiras de vasos de planta e coberturas tomadas por trepadeiras.
- O tempo está quente e com ele vem a temporada de construção - disse Wang, fazendo careta em sua casa a nordeste da Praça da Paz Celestial, no meio de um bairro pequinês ainda cheio de hutongs, o tradicional emaranhado de vielas chinesas.
As casas com quintal e hutongs de Pequim vêm desaparecendo rapidamente desde que a China abriu a economia na década de 1980, roubando parte da personalidade da cidade.
Nos últimos anos, historiadores e residentes manifestaram preocupação com a demolição dos hutongs. Eles foram substituídos por projetos comerciais de larga escala, como os construídos ao redor da rua Qianmen, no sul, e os agora em construção ao redor das Torres do Tambor e do Sino, a norte da Cidade Proibida.
Porém, igualmente ameaçadores à personalidade dos hutongs são os projetos de construção em pequena escala, muitos deles improvisados, que driblam as leis locais de urbanismo e alteram a atmosfera dos bairros, afirmam historiados dos hutong e antigos cidadãos de Pequim. Velhos moradores de hutong estão reclamando das reformas superdimensionadas dos vizinhos e discutindo como o governo está ou não tomando medidas severas contra obras ilegais que violam a estética dos hutongs de Pequim.
O preço astronômico da habitação na capital chinesa revela-se tentador para os donos de casas construírem para cima e para os lados, embora seja ilegal modificar a aparência externa das propriedades em zonas de interesse histórico. O resultado é uma confusão de concreto, coberturas de plástico e encerados, com andares extras ou um puxadinho sendo construído em um ou dois dias de obras clandestinas.
Vizinhos irritados reclamam que a lei nunca não parece estar sendo aplicada, mas existem sinais de que as autoridades de Pequim podem estar tentando brecar a construção ilegal. Antes do fim de julho, o governo do distrito de Dongcheng, onde existem diversos hutongs, planejava demolir 192 construções irregulares, segundo o "Beijing Evening News", jornal estatal. Cartazes alertando contra a construção ilegal estão grudados nas paredes de algumas dessas vielas.
Para complicar o esforço de conter o problema, os quintais de Pequim ainda são uma confusão de habitações públicas e privadas - um legado da era Mao, quando a propriedade privada era confiscada pelos governos e as famílias forçadas a se mudar. Segundo historiadores, mais da metade das propriedades em hutongs de Pequim é classificada como habitação pública, assim os responsáveis pelos projetos ilegais incluem proprietários ricos e moradores mais humildes.
Para alguns moradores de projetos sociais destinados aos hutongs, quatro gerações estão espremidas em um ou dois cômodos de uma casa com quintal. Sem cozinha, eles cozinham nas vielas. Sem encanamento interno, muitos moradores se deslocam a banheiros públicos toda manhã, equilibrando delicadamente baldes plásticos cheios que serviram como pinicos durante a noite. Durante o calor do verão, as vielas parecem salas de estar, com famílias inteiras reunidas do lado de fora.
Com um espaço tão disputado, as famílias podem se candidatar a morar em um projeto social nos arredores de Pequim ou improvisar no quintal ao construir puxadinhos e acomodar a família em crescimento.
A tensão continua elevada no número cinco do hutong Dongsiliutiao, onde autoridades municipais determinaram, no final de abril, a demolição de uma fileira de casas ilegais construídas por moradores pobres. Furiosos, semanas depois eles voltaram ao trabalho para reerguer as estruturas.
- As pessoas estão com raiva porque neste país o rico fica cada vez mais rico e o pobre, cada vez mais pobre - afirmou um homem de 35 anos que mora no bairro sob a condição de anonimato, por temer represálias, enquanto fumava um cigarro recostado ao batente da porta do outro lado da rua, ao lado de pilhas de tijolos e areia.
- As pessoas do número cinco não são ricas e não têm boas conexões. Se tivessem, não teriam demolido a casa deles.
Quem constrói afirma que faz isso para abrigar mais parentes em um espaço confinado.
- Estou construindo o segundo andar para a minha filha. Ela vai se casar, mas os imóveis em Pequim são tão caros que não temos opção. Só nos resta subir um andar - disse um senhor de 60 anos que mora em um hutong colado à Rua Fantasma, cheia de restaurantes noturnos iluminados somente por lanternas vermelhas.
Em frente à casa de Wang, uma monstruosidade de concreto de dois andares está quase completa, construída por uma autoridade local, ele afirmou.
- A questão não é apenas a poeira, o barulho e a perda de privacidade e de luz solar direta. Num nível mais profundo, tem a ver com a perda de uma parte fundamental da personalidade e cultura de Pequim - ele reclamou.
De acordo com ele, sua denúncia da construção ilegal não deu em nada. O comitê do bairro e as autoridades municipais não quiseram dar entrevista.
O homem que atendeu à porta da casa com a construção ilegal disse que planejava alugar o local por cerca de US$ 1.400 mensais, quem sabe para estrangeiros.
- Sei que estrangeiros gostam de ter um terraço no telhado e olhar a vista - temos casas tradicionais com quintal para onde quer que se olhe. Trata-se de uma propriedade única.
Os hutongs existem desde a dinastia Yuan no século XIII, quando Kublai Khan governava a China. Então, afirmam historiadores, eles eram passagens entre os iurtes, tradicionais cabanas circulares mongóis. Quando os comunistas fundaram a República Popular da China, em 1949, historiadores consideravam Pequim a cidade medieval mais bem preservada do mundo. Porém, logo Mao Tse-Tung e outras autoridades determinaram a destruição de trechos amplos da Pequim antiga, incluindo as velhas muralhas da cidade. Os proprietários foram expulsos. Depois da Revolução Cultural, as autoridades nem sempre conseguiam devolver as casas nos hutongs aos donos corretos porque esses estavam com medo da retribuição, haviam escapado de Pequim ou foram mortos.
Para preservacionistas, o governo precisa privatizar todos os quintais dos hutongs e reverter as leis de propriedade de Pequim às regras anteriores ao comunismo.
A rodada recente de tentativas de demolição é um passo na direção certa, disse He Shuzhong, fundador do Centro de Proteção à Herança Cultura de Pequim.
- Contudo, em primeiro lugar é fundamental que o governo impeça essas construções. O mais importante é que não apenas os moradores comuns deveriam ser o alvo das demolições. Escritórios do governo, grandes corporações, as forças armadas - todos devem ser tratados da mesma forma.