A noite pode ser muito escura em Yangon, uma cidade onde a iluminação pública, quando existe, acende e apaga por causa do fornecimento irregular de energia. Para um grupo de homens muçulmanos vigiando o bairro até o amanhecer, nunca fica claro o que se esconde nas ruas esburacadas e nos corredores.
- O governo não pode garantir nossa segurança - disse U Nyi Nyi, negociante que se sentou em uma cadeira de plástico com meia dúzia dos 130 homens que ele organizou para um programa improvisado de vigilância do bairro.
Após décadas de coexistência pacífica com a maioria budista no país, os muçulmanos afirmam que eles agora constantemente temem o próximo ataque. No último ano, eles dizem que vários episódios de violência em todo o país liderados por gangues agressivas de budistas os ensinaram que se a violência chegar ao bairro deles, eles estão sozinhos.
- Não acho que a polícia irá nos proteger - Nyi Nyi disse.
O programa de vigilância do bairro, um grupo heterogêneo de homens que verificam quaisquer estranhos suspeitos de fora e mantêm guardados tacos de madeira e barras de metal por perto, é um sinal do quanto às relações se deterioraram entre os budistas e os muçulmanos em Mianmar, antigamente conhecido como a Birmânia.
Aproximadamente, 90 por cento da população do país de 55 milhões são de budistas, com os muçulmanos representando entre quatro a oito por cento da população.
Desde os dias coloniais da Grã-Bretanha, Yangon, antiga Rangum, tem sido uma cidade multicultural onde os budistas vivem lado a lado com muçulmanos, cristãos e hindus. Mesquitas e templos budistas ficam literalmente nas sombras um do outro.
Atualmente, o medo e a suspeita maculam as relações das duas comunidades, dizem os muçulmanos.
- Estamos perdendo a confiança mutuamente. Qualquer transação comercial entre um budista e um muçulmano pode se transformar em um acidente - disse U Aye, muçulmano vendedor de carros usados.
A raiz da violência, que já deixou por volta de 200 muçulmanos mortos no ano passado, parece parcialmente ser o legado dos anos coloniais quando os indianos, muitos dos quais eram muçulmanos, chegaram ao país como funcionários públicos e como soldados, alimentando o resentimento entre os budistas birmaneses. Nos últimos meses, monges radicais exploraram essas queixas históricas, inflamando temores de que os muçulmanos estão tendo mais filhos que os budistas e poderiam enfraquecer a natureza budista do país.
Até agora, Yangon, que é de longe a maior cidade do país, escapou principalmente da violência. No entanto, já houve alguns pequenos conflitos na cidade que intensificaram as preocupações por aqui, alimentando rumores sobre ataques pendentes tanto na comunidade budista quando na muçulmana.
Dias após a multidão budista devastar a cidade central de Meiktila em março, dois caminhões cheios de homens apareceram no bairro de Nyi Nyi e arremessaram pedras nos vigias noturnos com estilingues.
Alguns muçulmanos de posses fugiram para a Malásia ou para Singapura. Os negócios dos muçulmanos estão perdendo clientes budistas. Um crescente movimento budista conhecido como 969, que tem a aprovação de alguns dos líderes do país, está fazendo campanha para o boicote de produtos e de negócios muçulmanos e pela proibição de casamentos inter-religiosos.
O movimento declara que não está envolvido com a violência, mas os críticos afirmam que, no mínimo, os sermões cheios de ódio estão ajudando a inspirar as matanças.
- Esta é a primeira vez que vivenciamos isso na vida - disse U Maung Maung Myint, que administra uma empresa de importação-exportação e é um dos administradores da mesquita de Bengali, que fica a apenas algumas centenas de passos do templo budista, de uma igreja cristã e de um templo hindu. Ele se referiu especificamente à desconfiança entre as comunidades.
Após uma vida se sentindo birmanês, Maung Myint disse que ele se sentiu "traído". Pelo menos duas vezes durante o governo militar, os muçulmanos se juntaram aos manifestantes pedindo a mudança política, disse.
- Marchamos em frente à Embaixada Americana e entoamos, 'Queremos democracia!' - disse ele.
- Esperávamos que as nossas vidas fossem ser mais pacíficas - não esperávamos isso - Maung Myint disse em uma entrevista em uma sexta-feira recentemente, no terceiro andar da mesquita, onde instalaram câmeras de segurança no ano passado para proteção contra incêndio criminoso.
Mianmar é atualmente governado por um governo nominalmente civil, mas as novas liberdades ampliaram as velhas animosidades.
A maior parte da violência virou manchetes dentro e fora do país. Todavia, menores incidentes geralmente não têm sido divulgados. Em um caso desses, a mercearia de U Khin Maung Htay, de 59 anos, foi atacada em fevereiro por uma multidão budista no município de Hlaing Thaya, diretamente do outro lado do Rio Hlaing de Yangon.
Maung Htay era o chefe do bairro, e alguns de seus amigos budistas o avisaram de que o problema estava se formando.
- Chamei a polícia, mas disseram, 'Não se preocupe, não há problema' - disse Maung Htay.
Quando o bando budista atacou, a polícia chegou, mas partiu após não conseguir persuadir a multidão a se dispersar, disse. O comércio de Maung Htay foi destruído, e tudo que havia dentro foi saqueado.
Ele fugiu de sua casa e agora é refugiado em sua própria cidade, amontoado em um apartamento de dois quartos na Yangon central com 22 outros parentes.
Ele tentou retornar para o bairro, disse, mas moradores zangados, alguns deles ex-clientes, gritaram abusos e o ameaçaram.
- Disseram: 'Volte para a Índia! Volte para Bangladesh!' - Maung Htay contou.
A sugestão de que os muçulmanos deixem o país tem sido um refrão comum durante a violência, o que confunde muitos muçulmanos que sempre se consideraram birmaneses. Maung Htay, o seu pai e o seu avô são todos naturais de Mianmar.
Os muçulmanos de Mianmar são um conjunto diverso de etnias e aparências. Em algumas famílias, as mulheres usam lenços na cabeça e os homens deixam a barba crescer. Entretanto, muitos dizem que têm se esforçado para se harmonizar com a sociedade birmanesa.
- Temos um estilo de vida de Mianmar. Somos cidadãos de Mianmar. Frequentamos as escolas de Mianmar - disse U Maung Maung Myint, o proprietário de um negócio de editorial de desktop que não está ligado ao negócio de importação-exportação.
Noventa por cento de seus clientes são budistas, mas no começo desse ano muitos deles pararam de vir.
- Foi a primeira vez que senti a descriminação - disse ele.
Os budistas em Mianmar são geralmente sinceros em relação à aversão contra os muçulmanos.
U Soe Nyi Nyi, o dono de um restaurante que inclui a marca principal Feel, uma rede popular em Yangon, disse que ele geralmente evitava contratar muçulmanos porque "existem tantas diferenças - a postura deles, as maneiras, o comportamento".
Entre os seus 1800 empregados só existem dois muçulmanos, um atendente de estacionamento e um homem que faz um tipo de sorvete indiano.
No mercado imobiliário, donos de edifícios budistas não querem vender apartamento para muçulmanos, Soe Nyi Nyi disse.
- Se vender um apartamento para uma família muçulmana, todos os preços no edifício cairão - acrescentou.
U Myint Thein, que é proprietário de um comércio que vende fogões a gás importados da Índia, disse que achou difícil explicar a violência para os filhos.
-Fiz o melhor para garantir que elas não ouvissem sobre essas coisas terríveis, mas eles ouviram. Nunca havia pensado em sair desse país. Porém, não quero que os meus filhos passem mais por isso - disse.