O dia 23 de agosto de 1980 estava frio, típico do inverno de Porto Alegre. Mas algo atípico pairava no ar gelado e úmido. As ditaduras que se espraiavam como algo rotineiro na América do Sul talvez não se dessem conta: uma primavera florescia, e não era só na vegetação.
Indiferente a essa lógica que se desenhava na geopolítica regional, o general Jorge Videla, um dos mais cruéis ditadores daquele inverno sul-americano, morto de causas naturais no último dia 17, veio a Porto Alegre para "reinaugurar" a Praça Argentina, que passara por reformas. A solenidade era um mimo do colega brasileiro, o também general João Figueiredo. Videla sabia que estava perto de casa, na Porto Alegre que se jacta de seus ares platenses. Só não sabia que estava mais próximo ainda de jovens profundamente contrariados com as notícias que vinham do outro lado da fronteira, onde 30 mil pessoas, segundo entidades de direitos humanos, foram assassinadas ou desaparecidas nas masmorras ou nos voos da morte. A Praça Argentina, na Avenida João Pessoa, ficava a não mais que 50 metros do campus central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
- A presença de Videla era uma provocação - conta o jornalista Ivanir Bortot, à época líder estudantil que participou do movimento naquele dia frio e que, 27 anos depois, escreveu o livro Abaixo a Repressão, com Rafael Guimaraens (Editora Libretos, 355 páginas, edição esgotada).
Na época, era mais que uma provocação. Era uma afronta. Estudantes de UFRGS, PUC, Unisinos, secundaristas programaram um ato em repúdio a Videla. Pela cidade, espalharam-se as pichações "Fora, Videla!". Vieram à Capital estudantes do Interior. Dois dias antes da solenidade, foi entregue ao consulado da Argentina pedido de informações sobre sete brasileiros desaparecidos no país. Para a véspera, foi promovido um "ato de repúdio" a Videla. A Brigada Militar interveio. Os estudantes gritavam bordões que a passagem do tempo tornaria clichês, como "Soldado também é explorado", "Povo unido jamais será vencido" e "Povo na rua derruba a ditadura". E apanhavam. Das sacadas da Casa do Estudante, voavam gelo, ovos e laranjas contra os policiais, que mais e mais distribuíam cacetadas a esmo. Enfim, o pau pegou. Mas o ato foi mantido. Videla e Figueiredo almoçavam no Palácio Piratini e eram informados do que ocorria na praça. Cancelaram a cerimônia. Videla se foi. Os estudantes se deram as mãos. Cantavam as flores que despontavam na antessala da primavera sul-americana.
- Apanhamos, mas vencemos - diz Bortot, que fez um capítulo no livro com o título de O dia em que Videla amarelou.
Entrevista
O símbolo que ficou: as ditaduras arrefeciam, e os anos de chumbo estavam em seu ocaso. Por telefone, de Brasília, onde vive, Bortot concedeu a entrevista cujos principais trechos podem ser lidos ao lado:
Cultura - Como foi aquele dia?
Ivanir Bortot - Foi difícil. Fizemos uma frente para evitar que a praça fosse reinaugurada pelo Videla. Tinha muita gente, mais de mil pessoas. Quando penso naquele dia, me lembro de uma menina que era da Famecos e que ergueu a bandeira do Brasil, enquanto recuávamos por causa do avanço dos brigadianos. A gente recuava para dentro do campus. Ela botou a bandeira no rosto e não viu a polícia vindo. E os caras desceram o cacete na menina. Eu, particularmente, estava na frente e corri muito. Havia chovido, a rua estava molhada. Eu caí no chão. Quando me virei, tinha um policial com um cassetete de madeira, na época era madeira. O cara me deu uma cacetada nas costas que foi uma dor que não tenho como descrever a intensidade. Quando consegui levantar, o sujeito me acertou os pés. Tinha uns ônibus parados. Saí pelo meio dos ônibus e me mandei. Eles invadiram o restaurante universitário, houve quebradeira, prenderam muita gente. Eu tinha sido presidente do DCE da PUC, estudava na Famecos, mas fui expulso em 1970. Depois, voltei a fazer jornalismo na UFRGS. A manifestação foi organizada pelo pessoal da UFRGS, mas com outras universidades.
Cultura - Vocês apanharam, mas se consideraram vitoriosos?
Bortot - Com certeza. Foi uma grande vitória. Eles não puderam inaugurar a praça. O governo do RS queria homenagear o ditador argentino e resolveu reinaugurar a praça. Tinha todo um marketing.
Cultura - O regime militar argentino (1976 a 1983) caiu três anos depois...
Bortot - Havia um desgaste das ditaduras argentina e brasileira (que, iniciada em 1964, terminou cinco anos depois do episódio, em 1985). Para nós, do movimento estudantil, foi importante. Nossa manifestação foi grande, a imprensa tinha dificuldade. Primeiro, começaram a dizer que tinha problema de trânsito, que havia gente se manifestando na João Pessoa. O Pedro Simon falou que algo estava ocorrendo. Ninguém acreditava nem tinha ideia da força que o movimento estudantil conseguiu com a manifestação. Percebemos que havia espaço para contestar o regime.
Cultura - O episódio o marcou?
Bortot - Sim. Marcou a todos, porque deu para ver ali que a democracia no Brasil seria reconquistada de forma democrática, com a participação das pessoas. O resultado desse episódio é que a quantidade de estudantes nas manifestações aumentou. O movimento estudantil cresceu, bem como a luta pela anistia. O movimento estudantil passou a aparecer como uma vanguarda na luta pela democracia, em um processo crescente de conquistas. E o importante é que a imprensa noticiou o fato fortemente, Zero Hora, o Jornal do Brasil, O Globo, a Folha, a Folha da Tarde, as rádios, TVs... Foi um fato importante nacionalmente. A gente viu ali, também, que havia claramente uma articulação muito forte entre os regimes militares brasileiro e argentino.