Porto Príncipe, Haiti - Em uma nova biografia, Wyclef Jean, celebridade haitiana do hip-hop, alega ter sido "crucificado" após o terremoto do dia 12 de janeiro de 2010, quando encarou perguntas sobre o registro financeiro de sua instituição de caridade e sua capacidade de lidar com um montante que chegou a contabilizar 16 milhões de dólares em doações.
Retratando-se como perseguido, tal como Jesus e o reverendo Martin Luther King Jr., Jean, de 40 anos, escreve com indignação sobre insinuações de que teria utilizado a sua instituição de caridade baseada em Nova York, chamada Yele, em benefício pessoal. Ele diz não precisar disso - Eu tenho uma coleção de relógios no valor de 500 mil dólares - e que os que duvidam dele algum dia vão entender que - a Yele é o maior patrimônio e aliado do Haiti.
Porém, em turnê para divulgar o livro "Purpose: An Immigrant's Story" ("Propósito: História de um imigrante", em tradução literal), Jean, cuja candidatura à presidência do Haiti foi cassada após o terremoto, esquece-se de mencionar dois fatos fundamentais: a investigação contínua de um procurador-geral de Nova York já descobriu irregularidades financeiras na Yele, e a instituição de caridade saiu efetivamente de atividade em setembro, deixando um rastro de dívidas, projetos inacabados e promessas não cumpridas.
- Se dependesse da Yele - disse Diaoly Estime, cujo orfanato tem uma pintura de parede de Jean e da esposa, - essas crianças estariam todas mortas agora.
Em um momento em que a Yele está sendo cercada por credores enfurecidos, há indícios de que milhões de dólares em doações destinadas às vítimas do terremoto serviram apenas para sustentar seus próprios escritórios, salários, honorários de consultores e viagens, para que o cunhado de Jean trabalhasse em projetos que não foram concretizados, para a compra de materiais para fazer casas temporárias que não vieram a ser construídas e para pagar contadores que têm procurado enfrentar os problemas jurídicos da instituição.
Na realidade haitiana, é difícil discernir marcas da presença da Yele. A propriedade rural murada alugada para ser a sua sede, pela qual a instituição de caridade esbanjou 600 mil dólares, está deserta. As equipes de faxineiros que trabalhavam na manutenção da limpeza do local foram despedidas. As tendas e barracas de lona identificadas com a marca da Yele, em sua maioria, se desintegraram; um líder de acampamento disse que não há sinal da Yele desde que a candidatura de Jean à presidência foi cassada, porque ele mora em Saddle River, Nova Jersey, e não no Haiti.
No final do primeiro semestre deste ano, a instituição de caridade naufragou.
No final de agosto, Derek P. Johnson, executivo-chefe da Yele, anunciou sua demissão aos apoiadores.
- Como sou o único funcionário que resta na fundação, minha decisão implica o fechamento da organização como um todo - escreveu Johnson, ex-executivo da Time Warner que substituiu Jean no comando da Yele quando o músico declarou sua candidatura, em agosto de 2010.
O pedido de demissão surgiu depois de Jean se recusar a aceitar um acordo, proposto pelo procurador-geral, que cobriria as atividades pré-terremoto da instituição de caridade, e ele contratou Avi Schick, advogado que tinha sido membro da equipe de transição do procurador-geral Eric T. Schneiderman, de Nova York.
O acordo exigia que Jean e os outros dois fundadores da Yele pagassem 600 mil dólares em restituição "para remediar o desperdício dos bens da fundação". Ele também exigia que a Yele pagasse por uma auditoria forense de suas despesas pós-desastre, como a que tinha sido feita no caso das suas finanças pré-terremoto, e começasse a "desacelerar seus negócios".
A porta-voz de Jean disse que ele e seus advogados - estão trabalhando constantemente para resolver quaisquer questões pendentes com relação à Yele antes da instituição ser fechada, e Jean tem mantido seu incansável compromisso com seu país amado.
Nem a porta-voz nem Hugh Locke, cofundador da Yele, responderam a perguntas específicas.
Jean fundou a Yele, uma palavra que ele cunhou para designar um "grito pela liberdade", em 2004. Ele emigrou para os Estados Unidos quando criança, tornando-se uma estrela internacional com sua banda Fugees, nos anos 1990. Em sua biografia, ele diz que sua jornada desde "uma cabana com chão de terra" até "uma mansão em Nova Jersey decorada com um prêmio Grammy" o motivou a dar uma retribuição à sua terra natal.
Contudo, desde o início, a Yele foi negligente quanto à contabilidade e à declaração de impostos, deixando pouco claras as fronteiras entre as empresas pessoais e as instituições de caridade de seus fundadores.
A auditoria forense analisou 3 milhões de dólares das despesas da instituição de caridade entre 2005 e 2009 e descobriu que 256.580 dólares foram empregados em benefícios ilegítimos destinados a Jean e a outros membros da diretoria e funcionários da Yele, bem como transações impróprias ou potencialmente inadequadas. Esse total inclui 24 mil dólares por serviços de motoristas prestados a Jean e 30.763 dólares por um avião privado que transportou Lindsay Lohan de Nova Jersey a Chicago para um evento beneficente que arrecadou apenas 66 mil.
Sobre Jean, Schick disse o seguinte: - Embora a maioria das conclusões e recomendações da auditoria não estejam relacionadas com ele de forma alguma, ele, no entanto, tem o compromisso de garantir que as coisas sejam feitas da forma correta.
Antes do terremoto, a Yele era pequena, tendo apenas 37 mil dólares em ativos. Imediatamente depois, o dinheiro começou a chegar aos montes. Jean disse que arrecadou 1 milhão de dólares em 24 horas quando pediu que seus seguidores no Twitter fizessem doações. A instituição também se beneficiou ao se associar a organizações mais estabelecidas, como a UNICEF, quando ele co-organizou o programa "Esperança para o Haiti Agora", da MTV, com George Clooney.
Em 2010, a Yele gastou 9 milhões de dólares. Metade disso foi para viagens, salários, taxas de consultores e despesas com seus escritórios e armazém. Em contraste, outra instituição de caridade de uma celebridade, a J/P Haitian Relief Organization, de Sean Penn, gastou 13 milhões de dólares, destinando apenas 10 por cento para esses custos.
Embora o grupo de Penn tenha gasto 43 mil dólares em despesas relacionadas a escritórios, a Yele gastou 1,4 milhões, incluindo 375 mil dólares com serviços de "paisagismo" e 37 mil para o aluguel do estúdio de gravação de Jean em Manhattan. A Yele gastou 470,440 dólares com alimentos e bebidas consumidos no âmbito da própria instituição.
Parte da verba arrecada pela Yele foi destinada a projetos que nunca chegaram a ser concretizados: casas temporárias nas quais foram investidos 93 mil dólares; um centro médico que seria alojado em cúpulas geodésicas pela qual a instituição pagou 146 mil dólares; a revitalização de uma praça na favela Cité Soleil, onde supostas melhorias que custaram 230 mil dólares estão longe de ser vistas.
Houve contratos questionáveis, também: o cunhado de Jean, Eric Warnel Pierre, arrecadou cerca de 630 mil dólares para três projetos, incluindo o centro médico e a praça - o que a declaração de impostos da Yele chama de "reconstrução do Haiti". Pierre não respondeu às mensagens que deixei para ele.
O maior programa da Yele era a formação de um corpo de funcionários, através do qual a instituição disse ter contratado milhares de haitianos por um mês cada para limpar ruas e canais. Alguns especialistas em ajuda humanitária acreditam que essas intervenções são dignas, enquanto outros as criticam por não fornecerem empregos duradouros ou, com a limpeza das ruas, resultados duradouros. O programa da Yele custou mais de 5 milhões de dólares, sendo que apenas cerca de metade disso foi para os trabalhadores.
Tal programa também deixou problemas em seu legado. Recentemente, a polícia haitiana prendeu um funcionário da Yele a mando de uma empresa transportadora de lixo que afirma que ela tem de receber mais de 100 mil dólares por dois meses de trabalho, disse Locke em um e-mail enviado para amigos.
Embora a Yele descreva o seu apoio ao Orfanato Jean et Marie como uma de suas realizações mais significativas, a ajuda fornecida não era, na verdade, a desejada pelo orfanato, diz o diretor da entidade.
Após o orfanato ter sido arrasado pelo terremoto, outro grupo, o Projeto Global Orphan, veio rapidamente a substituí-lo por uma estrutura de concreto simples. No dia em que as crianças voltaram a morar no local, uma equipe da Yele se deparou com elas, disse o diretor, Diaoly Estime.
- Eles se ofereceram para reconstruir o orfanato e eu disse que ele já estava reconstruído, mas que precisávamos de ajuda para sobreviver - disse ela. - Eles começaram a nos dar 3 mil dólares por mês para alimentação. Além disso, a esposa de Jean fez uma visita com uma estrela de futebol e policiais e jornalistas e deram presentes para as crianças.
Então, no verão de 2010, a Yele cortou integralmente a mensalidade encaminhada ao orfanato, passando a enviar, por um tempo, uma cesta semanal de legumes e arroz. As crianças estavam sempre com fome e chorando, disse o reverendo Jean Claude Dorcelly, cuja Igreja Apostólica Haitiana-Americana de Spring Valley, Nova York, começou a juntar dinheiro para ajudar.
Ao mesmo tempo, a Yele avançou com o seu plano de construção. O cunhado de Jean assinou um contrato de 154 mil dólares para construir um segundo andar em cima do dormitório e um segundo edifício, com um refeitório e salas de aula.
Dorcelly manifestou sua gratidão.
- Mas é um presente incompleto - disse ele. - Eles têm um novo dormitório, mas só têm camas para metade das crianças. Eles têm salas de aula, mas não há dinheiro para pagar os professores. Eles têm uma lanchonete, mas não têm dinheiro para comprar comida.
The New York Times
Instituição de caridade do Haiti é fechada por irregularidades financeiras
Criada por estrela haitiana do hip-hop, fundação saiu de atividade deixando rastro de dívidas, projetos inacabados e promessas não cumpridas
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