Há 40 anos, o advogado chileno Roberto Garretón acumula cargos que o credenciam como um dos principais especialistas latino-americanos em direitos humanos. Foi preso, em 1987, ao publicar artigo condenatório aos desmandos no seu país.
Tantas fez, que, em 1997, tornou-se representante da Organização das Nações Unidas para avaliar a situação humanitária na distante República Democrática do Congo (ex-Zaire). Desde então, participou de outras missões.
Nesta entrevista por telefone, Garretón compara diferentes tratamentos que países dedicam aos espólios autoritários que lhes tocam. Critica o atraso histórico da comissão da verdade brasileira e a dispersão das suas metas, que, segundo ele, é um vício de origem que deve levá-la ao fracasso. Confira trechos:
Zero Hora - Como está o tratamento das questões da ditadura no Chile, seu país?
Roberto Garretón - Há 700 militares em juízo, acusados de cometer crimes. Durante a ditadura, foi aprovada uma lei de anistia que impedia os juízos da época. Quando terminou a ditadura, os chilenos continuaram aplicando a mesma ideia de anistia e não processavam os criminosos. Isso durou até outubro de 1998. Quando prendem Pinochet em Londres, os juízes chilenos mudam sua postura e começam a abrir juízos contra militares que haviam cometido crimes contra a humanidade. Desses 700 militares que estão sendo processados, alguns foram já condenados e cumprem pena. Estão presos cerca de 80 militares, alguns deles já condenados e outros com prisão preventiva. Desses militares, alguns estão condenados por muitos crimes, a mais de 200 anos de prisão. Lamentavelmente, nos últimos tempos, os juízes da Corte Suprema estão aplicando penas muito baixas. Uma pessoa que assassinou alguém é condenada a cinco anos de prisão. Portanto, cumpre a pena em liberdade. Esse é o grande problema que há hoje em dia.
ZH - Houve alguma mudança, há alguma revisão?
Garretón - Os juízos prosseguem. Todos os dias há novas sentenças, e as novas sentenças, ditadas entre 2005 e 2012, são muito baixas. As sentenças entre 1998 e 2005 são muito mais altas.
ZH - E por que ocorre isso?
Garretón - Simplesmente, como a classe política não mostra interesse em condenar por esses crimes, os juízes começaram a se sentir solitários e a aplicar penas mais baixas.
ZH - O senhor tem acompanhado a situação no Brasil, a abertura da comissão da verdade?
Garretón - Sim, claro. A comissão da verdade no Chile foi criada um mês depois do fim da ditadura. No Brasil, quase 30 anos depois.
ZH - Por que essa demora no Brasil?
Garretón - É um problema interno brasileiro, não consigo entender o porquê.
ZH - A sociedade chilena é muito dividida. Ainda assim, a comissão da verdade foi criada antes da brasileira.
Garretón - É (a sociedade) igual à brasileira.
ZH - Mas o que o senhor acredita que pode ocorrer com a comissão da verdade brasileira?
Garretón - Temo que a comissão não chegue a nenhuma parte. São sete pessoas na comissão, e há a apreciação de mandatos de antes da ditadura, de 1946, de governos que não eram ditaduras. A comissão chilena apreciou os crimes de Pinochet (1973-1990). A do Brasil aprecia os governos de Getúlio Vargas, João Goulart, Juscelino Kubitschek, como se fossem todos a mesma coisa. Será impossível, ainda mais com poucos recursos. Dá a impressão de que, para as autoridades brasileiras, não há muita diferença entre ditadura e democracia, entre Médici e Kubitschek, entre João Goulart, Jânio Quadros, tudo igual. Temo que a comissão brasileira seja um fracasso.
ZH - Por falta de foco?
Garretón - Exatamente. Essas comissões se criam para examinar ditaduras criminais. No Brasil, começou errado. A primeira comissão da verdade é a argentina, que fez uma lista de vítimas, mas não dos agressores. A segunda é a chilena, que também deu os nomes das vítimas, mas não os dos agressores. Isso é compreensível naquela época. Mas as comissões evoluíram. Em El Salvador, há a indicação de quem são as vítimas e de quem são os agressores, com nomes e sobrenomes. No Paraguai, são dados os nomes das vítimas e também dos agressores. No Peru, a comissão dá nomes de vítimas e agressores. Então, há um contrassenso que, no ano de 2012, crie-se uma comissão da verdade que não dará os nomes dos agressores.
ZH - Quais as comissões mais adiantadas da América Latina?
Garretón - Neste momento, a única que está funcionando é a brasileira. A que se criou na Argentina em 1984 era débil, com o tempo foram melhorando. Paraguai, Peru, El Salvador...
ZH - Sem nos determos nas comissões da verdade, como os países tratam os espólios de suas ditaduras?
Garretón - Na Argentina, hoje em dia, há menos presos que no Chile, mas com penas mais longas.
ZH - Há como fazer um ranking dos países que lidam melhor com esses espólios?
Garretón - Na Argentina, há pessoas condenadas a 300 anos. Mas são poucos. No Chile, são 700 condenados, com penas mais baixas...
ZH - Qual a melhor das duas situações?
Garretón - As duas coisas são boas por um lado e ruins por outro.
ZH - Muitas pessoas dizem que deve haver equivalência entre os agentes das ditaduras e os guerrilheiros que pegaram em armas. Outros dizem que pegar em armas contra uma ditadura era legítimo. Como o senhor avalia isso?
Garretón - É um disparate. Uma coisa é o delito cometido por um cidadão, e outra são os crimes cometidas por políticas públicas, do Estado. Não se pode misturar. Há muitos discursos, há quem diga que deve ser virada a página e olhar para o futuro, há muitos discursos assim, mas, eticamente, são insustentáveis.
30 anos depois
"Temo que a comissão brasileira seja um fracasso", avalia especialista chileno dos direitos humanos
Roberto Garretón cita falta de foco como principal erro da comissão da verdade instalada para investigar crimes durante a ditadura
Léo Gerchmann
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