Mesmo em seu auge, a casa que ficava no número 24 da Rua Beizongbu não era nenhuma joia arquitetônica. Ela não passava de uma das incontáveis construções de tijolos e madeira que compõe a paisagem labiríntica da antiga capital imperial. Mas durante sete anos, na década de 1930, ela abrigou um dos casais mais famosos da China moderna: Liang Sicheng e Lin Huiyin.
Arquitetos formados nos Estados Unidos, eles retornaram à terra natal para defender a ideia de que uma grande nação deve se orgulhar de seus patrimônios históricos. Foi Liang, filho de uma ilustre família de intelectuais, que implorou para que os comunistas preservassem as construções e as muralhas da dinastia Yuan. Entretanto, Mao, o inclemente líder chinês, tinha outra opinião.
Como era de se esperar, os conservacionistas ficaram enfurecidos ao descobrir, recentemente, que a casa havia sido reduzida a escombros. Mas, o acontecimento também despertou entre eles um senso de impotência, já que uma "relíquia cultural" pôde ser destruída com tanta facilidade por uma empreiteira ligada ao governo.
Os burocratas culturais que supervisionam a preservação de locais históricos no Distrito de Dongcheng não se importaram muito com a demolição, que ocorreu discretamente durante o feriado do Ano Novo Chinês, quando a maior parte do país estava de folga.
- Uma réplica será construída - afirmou sem remorsos um funcionário do governo chinês.
Em vista da paixão de seus antigos ocupantes, a destruição da casa no número 24 da rua Beizongbu foi encarada como uma cruel ironia pela cidade cujas construções centenárias foram lentamente substituídas por grandes torres de vidro ou, em alguns casos, por bizarras releituras do passado.
A imprensa oficial publicou uma enxurrada de artigos e reportagens afirmando que a demolição foi uma violação arbitrária das leis do país e uma afronta à história chinesa. Até mesmo o Xinhua, o plácido jornal estatal, foi ferrenho em suas críticas. "Casa demolida, cultura ferida" era a principal manchete do site do jornal no dia 2 de fevereiro.
Em um de seus muitos artigos a esse respeito, o Xinhua atacou a complacência do governo municipal. "Uma relíquia cultural foi destruída e uma nova frase foi criada", afirmou um dos comentaristas, se referindo sarcasticamente ao funcionário do governo que descreveu a destruição como uma "reforma que começou pela demolição".
A reportagem indicou que dos 533 mil patrimônios documentados pela Secretaria Nacional de Relíquias Culturais no ano passado, 44 mil já desapareceram. "Por trás dessas imagens desoladoras, milhares de páginas de informações históricas desapareceram junto com as construções", afirmava a reportagem.
Mesmo abalado pela perda da casa que havia lutado para salvar, He Shuzhong, um dos mais famosos defensores da preservação do patrimônio histórico da cidade, disse ter se consolado com a revolta da população.
Segundo ele, a revolta não foi desencadeada apenas pela compreensão de que Pequim perdeu muito de seu passado, mas também porque a busca frenética pela modernização da cidade deixou muitos de seus cidadãos se sentindo à deriva.
- Afinal de contas, Liang Sicheng e Lin Huiyin promoveram a noção de que intelectuais e especialistas deveriam se comprometer com o desenvolvimento da sociedade e da nação - afirmou He.
Sua ONG, o Centro de Proteção da Herança Cultural de Pequim, lutou para que a casa fosse considerada um monumento histórico em 2009.
- Acho que as pessoas acreditam que a China moderna não tem o mesmo senso de devoção. Por isso, a perda desse edifício significa tanto.
As vidas de Liang e Lin simbolizam, de certa forma, a dura experiência de muitos chineses que receberam uma educação ocidental e que estavam determinados a construir uma nova China.
Depois de estudarem na Universidade da Pensilvânia, eles retornaram em 1928, realizando o primeiro grande estudo da história arquitetônica da China, caminhando sobre os telhados de templos milenares para redescobrir as antigas técnicas de construção.
Eles fundaram uma faculdade de arquitetura na cidade de Shenyang, no nordeste da China, e transformaram sua casa em Pequim em um espaço para os principais filósofos, poetas e artistas da cidade. Liang representou a China na equipe que projetou a sede da ONU em Nova York.
Quando Mao pediu para que ele fizesse um novo planejamento urbanístico para Pequim em 1949, Liang, inspirado pela difícil preservação das capitais europeias, propôs a construção de um novo espaço urbano do lado de fora da antiga metrópole, transformando suas muralhas imponentes em um parque linear.
Mao rejeitou a ideia, pois acreditava que a cidade imperial e suas muralhas eram símbolos indesejáveis do passado feudal da China. Na noite que antecedeu a demolição, Liang se sentou no alto de uma das muralhas e chorou. Durante os anos seguintes, Liang ajudou a criar um novo estilo para a arquitetura chinesa, unindo elementos tradicionais e temas ocidentais.
Sua contribuição mais famosa para a cidade de Pequim é o Monumento aos Heróis do Povo, um enorme obelisco de pedra no centro da Praça da Paz Celestial. Como muitos outros intelectuais, sua sorte mudou durante os levantes da década de 1950, em especial durante a Revolução Cultural conduzida por Mao.
Atacado por sua educação ocidental e por sua afinidade com as antiguidades chinesas, foi considerado um antirrevolucionário e morreu em 1972. (Lin morreu de tuberculose em 1955. Sua sobrinha-neta, a arquiteta americana Maya Lin, projetou o Memorial para os Veteranos da Guerra do Vietnã, em Washington.)
Foram necessárias três décadas até que o governo municipal começasse a valorizar, ao menos no papel, os ideais defendidos pelo homem que é considerado o pai da moderna arquitetura chinesa. Foi apenas em 2005, quando quase metade das três mil ruas e vielas da cidade já havia sido apagada do mapa, que a prefeitura lançou um plano para preservar o que restou do centro antigo.
Entretanto, esse plano pareceu ser apenas uma piada de mau gosto, em especial durante a preparação para os jogos olímpicos de 2008, quanto empreiteiras associadas ao governo demoliram uma grande parte dos quarteirões protegidos.
- Eles publicaram um grande plano, mas as demolições nunca pararam - afirmou Hua Xinmin, um conservacionista cujo pai sucedeu Liang no papel de principal urbanista da cidade.
Somos tentados a imaginar que a destruição da casa que ficava no número 24 da rua Beizongbu poderia ser comparada ao que ocorreu em Nova York quando a prefeitura da cidade ordenou que a bela Pennsylvania Station fosse demolida, gerando protestos que ajudaram a fortalecer o movimento pela preservação do patrimônio histórico nos Estados Unidos.
Entretanto, a julgar pelo pessimismo dos estudantes de arquitetura, dos amantes da história e dos cidadãos comuns de Pequim, que fizeram uma verdadeira peregrinação ao local dos escombros, não há muita razão para se acreditar em uma mudança de atitude das autoridades locais.
Ainda assim, os visitantes estavam determinados a desviar dos guardas para fotografar a única coisa que restou da casa: o esqueleto de madeira do que antes era a porta de entrada. Um senhor idoso observava em silêncio a confusão, mas quanto questionado, falou com detalhes sobre a casa e a vizinhança onde nasceu.
- Essa ruazinha costumava ficar cheia de gente famosa - disse o homem de 76 anos, funcionário aposentado dos correios que só informou seu sobrenome, Ma.
Ele apontou para trás, mostrando uma grande quantidade de detritos e, em seguida, para a frente. Lá estava sua casa, também marcada com o caractere chinês que significa "demolição". Não muito longe dali, podia-se ouvir o som da Segunda Circular - a rodovia construída sobre a muralha que Liang tanto amava.
- Todo mundo já se foi. Quando o governo manda, é hora de ir embora - disse Ma enquanto gesticulava.