Com a entrega de 61 ambulâncias a municípios do Rio Grande do Sul em 9 de janeiro, o objetivo do presidente Michel Temer (PMDB) era melhorar a avaliação do governo. Mas mais de um mês depois de os veículos destinados à substituição de ambulâncias antigas serem enfileirados no Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio, apenas 12 estão em operação – 80% permanecem em garagens de prefeituras e sedes do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
Por trás da demora, estão entraves burocráticos – como lentidão, erro ou falta de envio de documentos pela União – e dificuldades no emplacamento e na confecção do seguro obrigatório. Ocorreram ainda falhas estruturais: metade das ambulâncias foi entregue com problemas, que vão desde lanternas e sirenes queimadas, ar-condicionado e velocímetro sem funcionamento, até bateria e sistema elétrico com defeito.
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Ao anunciar quais cidades seriam beneficiadas, o secretário estadual da Saúde, João Gabbardo, garantiu que os veículos chegariam prontos para uso. Mas houve até situações em que o equipamento emperrou na estrada, antes de chegar ao destino – caso das unidades dos municípios de Candelária, Flores da Cunha, Rio Pardo e São Luiz Gonzaga.
Segundo a assessoria de imprensa da prefeitura de Candelária, por exemplo, foi necessário fazer a ligação em paralelo da bateria da ambulância com a de outro automóvel – a famosa chupeta – para ligá-la ainda no local da entrega. No caminho pela BR-386, durante parada para abastecimento, o procedimento foi novamente necessário. Após chegar na cidade, o veículo só entrou em operação depois de ter a bateria substituída porque a original, segundo a prefeitura, estava inutilizável – o mesmo problema foi apontado por outras 16 administrações municipais.
Os gestores suspeitam que as falhas mecânicas decorrem do tempo que os furgões ficaram parados antes da doação – a maioria foi fabricada em 2015. O Ministério da Saúde não confirma, mas também não desmente a hipótese. Gabbardo afirma que os percalços estão "superados" e que os consertos necessários foram realizados pelo fabricante sem qualquer custo.
Atraso no repasse dos termos de posse
Fora os defeitos técnicos, a burocracia também contribuiu para frear o início das operações. Embora a entrega dos furgões tenha ocorrido em cerimônia em 9 de janeiro, os termos de doação – documento que transfere a posse do governo federal para as prefeituras – só foram publicados no Diário Oficial da União 17 dias depois. Gabbardo garante que, tão logo soube da demora, entrou em contato com o ministro da Saúde, Ricardo Barros, e a pasta montou mutirão para solucionar o impasse.
– Houve atraso no envio dos termos de doações pelo ministério e o processo se deu em um período em que as prefeituras estavam com dificuldades da transição de governo. Por último, alguns documentos foram entregues com erros, como alguma troca no número do chassi, por exemplo, e as ambulâncias ficaram paradas no Detran por conta desses equívocos. Claro que o ideal é que já tivessem entrado em funcionamento, mas não estando não traz nenhum prejuízo à população, porque são ambulâncias para substituição – argumenta o secretário.
Há ainda situações mais inusitadas, como a de Restinga Seca, que foi buscar a ambulância três dias após a entrega oficial, mas o veículo veio sem a chave, recuperada 10 dias depois – a prefeitura ainda regulariza os documentos para liberar a operação. Já em Palmitinho está tudo pronto, mas a viatura não saiu da garagem porque as autoridades não encontraram data para inaugurá-la solenemente.
Para o presidente da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), Luciano Pinto (PDT), não é momento de encontrar culpados, mas de corrigir os entraves:
– Quando um prefeito recebe ambulância, tem a expectativa de que vai mandar emplacar e estará funcionando. Não é bem assim, há um trâmite. Agora, se as ambulâncias estão com as prefeituras, cabe aos gestores solucionar.
Capítulos da burocracia
1 – Trazidas de São Paulo, as ambulâncias foram entregues pelo presidente Michel Temer em cerimônia no Parque de Exposições Assis Brasil, em Esteio, no dia 9 de janeiro.
2 – Segundo afirmou na época o secretário estadual de Saúde, João Gabbardo, os veículos chegariam prontos para uso.
3 – Mas, ao retirar os veículos, muitas prefeituras foram surpreendidas por defeitos mecânicos, e apenas seis unidades (de atenção avançada) vieram emplacadas e licenciadas.
4 – Para todas as demais, era preciso providenciar emplacamento, licenciamento e seguro. Mas esse processo também emperrou porque a doação oficial aos municípios só foi publicada no Diário Oficial da União em 26 de janeiro.
5 – A partir de então, os termos de posse, obrigatórios para o emplacamento, começaram a ser enviados a conta-gotas aos municípios – alguns ainda não haviam recebido até quarta-feira e, em outros, os documentos chegaram com erro.
Pé no freio por falhas mecânicas e ausência de documentação
Antes de acudir pacientes em Rio Pardo, a nova ambulância da cidade precisou de socorro. O município é um dos 17 que enfrentou problemas com a bateria dos furgões. No dia da entrega oficial, foi preciso fazer ligação em paralelo a outro automóvel em Esteio e outra 30 quilômetros depois. Quando chegou em Rio Pardo, a viatura não ligou mais.
Somada à exigência de uma bateria nova, a revisão na concessionária diagnosticou que era necessário trocar um amortecedor, correias do motor e o mecanismo de fechadura das portas, além de conserto no ar-condicionado. A principal causa apontada pelos mecânicos foi desgaste pelo tempo em desuso.
Com o veículo antigo, em ação desde 2010, os 39 mil habitantes de Rio Pardo pagam pelo conserto mais frequente e caro do que o de um novo.
– Só conseguimos fazer manutenção corretiva, nunca preventiva, porque a ambulância não pode ficar parada para isso. Com uma reserva, poderemos trabalhar mais na prevenção – explica o secretário municipal de Saúde, Augusto Ferreira Pellegrini.
Consertada e emplacada, a recém-chegada ambulância aguarda o registro de licenciamento e o seguro.
Problemas com papelada retardam emplacamentos
Em São Pedro do Sul, a substituição trará economia de R$ 50 mil ao mês com cancelamento do contrato para uso de veículo terceirizado. Mas a nota fiscal enviada pelo governo federal foi a do fabricante, referente ao furgão de R$ 61,2 mil e oito lugares. Para conseguir o documento final, com a transformação em ambulância, no valor de R$ 150,6 mil e com sete lugares, o secretário extraordinário de governo, Marcelo Dutra, teve que persistir.
– Recebemos a nota ontem (quarta-feira da semana passada), depois de muitas horas de ligação e paciência. Só para conseguir um documento – contou Dutra, acrescentando problemas detectados na bateria e no sistema elétrico.
Agora, com o documento certo, ele espera conseguir emplacar a viatura. O mesmo ainda não foi possível em Tupanciretã, que até quarta-feira passada sequer havia recebido o termo de doação. Diante da burocracia, o secretário municipal de Saúde, Ezequiel Cella, é direto ao explicar a decisão da prefeitura:
– Não deveria, por não estar emplacada, mas em caso de extrema necessidade, vai ser utilizada. Se der chamado e a outra ambulância (antiga) estiver em operação, não é por causa de uma placa que vamos deixar de salvar uma vida.
CONTRAPONTO
O que diz o Ministério da Saúde
Por meio de nota, afirma que a "manutenção das ambulâncias é uma obrigação dos gestores locais". Informa que "os municípios devem seguir os trâmites burocráticos necessários para fazer a transferência das ambulâncias. Isso inclui transferência da documentação do governo federal para o gestor local, pagamento do seguro obrigatório, confecção das ambulâncias seguindo os padrões do Samu e o devido emplacamento". Ressalta que "a população não fica desassistida durante este período", porque a frota atual só deixa de atender quando a nova entra em operação. O órgão não comentou o atraso no envio dos termos de posse nem os defeitos apresentados pelos veículos.
ENTENDA O SERVIÇO
O Samu
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) – acionado pela ligação gratuita à Central de Regulação de Urgências pelo número 192 – funciona 24 horas e tem como objetivo socorrer rapidamente pacientes com unidades de urgência ou emergência, para atendimentos clínicos, cirúrgicos, obstétricos, entre outros, evitando sofrimento, sequelas ou mesmo a morte.
Média de ligações para 192 no RS
- 1.120 por dia
- 408,8 mil por ano
Estrutura no Estado
- 161 bases do Samu
- 276 municípios são atendidos
- 38 unidades de suporte avançado (UTIs móveis)*
- 187 unidades básicas*
- 18 motolâncias
- 10 veículos de intervenção rápida
- 1 helicóptero
- 90% da população é atendida com essa frota
*As novas ambulâncias vão substituir as que estão operando, por isso, os número não aumentaram.
Fonte: Secretaria Estadual de Saúde, com números atualizados em janeiro
ENTREVISTA
"Falta entendimento para tomada de decisões", diz especialista em gestão de saúde pública
O excesso de atores na administração da saúde pública, a baixa autonomia dos municípios e a carência de profissionais qualificados para gerir os processos, na visão da professora Liane Amorim (foto acima), coordenadora do MBA em Gestão de Serviços e Sistemas de Saúde da Unisinos, se somam para a ocorrência de problemas como o atraso na operação das ambulâncias.
O impasse com as ambulâncias reflete má gestão da saúde?
A saúde enfrenta a escassez de recursos e, quando se disponibiliza algum, há uma série de burocracias para colocá-los em uso. Existem dois lados: a falta de dinheiro e a má gestão. Sobre as ambulâncias, especificamente, considero um recurso necessário, porque faltam em muitos lugares, mas até que ponto apenas entregar uma ambulância resolve o problema? Não resolve. Mais rico do que vir e distribuir ambulâncias talvez fosse visitar hospitais para avaliar de fato as necessidades.
O sistema é mal organizado?
Existe uma hierarquia, mas, quanto mais hierarquia, mais níveis, mais atores, mais complexa se torna a gestão. Os municípios poderiam ter mais autonomia, mas com pessoas qualificadas e com competência para melhor tomar decisões. Isso desburocratizaria um pouco o sistema, flexibilizando ações de municípios e Estados.
O que poderia ser feito para agilizar processos como a liberação das ambulâncias?
Comunicação mais efetiva entre as esferas e maior qualificação de profissionais. Vejo que falta entendimento para a tomada de decisões e, como consequência, maior clareza do domínio de gestão das unidades.