De um lado, a Associação de Proprietários e Moradores de Jurerê Internacional (Ajin), o Ministério Público Federal (MPF), a Advocacia Geral da União (AGU) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). De outro, seis empresas, a Fundação Municipal de Meio Ambiente (Floram) e a prefeitura de Florianópolis. Em jogo, o futuro dos beach clubs do bairro mais visado da capital catarinense – e, por tabela, a maneira como a vocação turística da orla da cidade é explorada.
O caso, que vem se arrastando na Justiça há pelo menos 10 anos, teve um capítulo crucial no dia 20 de maio. O juiz Marcelo Krás Borges, da 6ª Vara Federal da Capital, determinou a demolição, desocupação e retirada dos entulhos das edificações e anexos do Cafe de La Musique, Donna, La Serena, 300 e GoSunset, e a anulação de suas licenças e autorizações. A alegação é de que há “uma evidente apropriação ilícita de um bem público em área de preservação permanente” (APP).
As casas foram condenadas, ainda, a pagar indenizações que variam de R$ 100 mil a R$ 500 mil pelos "danos ambientais perpetrados e pelo uso indevido de terreno de marinha e de bem de uso comum do povo (praia e passarelas)". Proprietária de parte dos imóveis em que elas se instalaram, a administradora imobiliária Ciacoi, integrante do grupo Habitasul, também foi multada em R$ 10 milhões por "explorar e ocupar ilicitamente os cinco bares de praia". Todas as empresas terão que apresentar um Projeto de Recuperação de Área Degradada (Prad), a ser submetido ao Ibama.
Floram e prefeitura são citadas como igualmente responsáveis pelo dano ambiental por terem permitido (ou não impedido) a ocupação de APP. O não cumprimento da sentença implica em multa de R$ 100 mil diários a partir da intimação, o que deve ocorrer por volta do próximo dia 30. As rés irão recorrer da decisão até se esgotarem todas as possibilidades.
A querela que está tirando o sono dos empreendedores surgiu justamente porque a vizinhança não conseguia dormir. Segundo o diretor jurídico da Ajin, Luiz Carlos Zucco, o barulho começou em 2004, com a gradativa transformação dos originalmente concebidos como "postos de atendimento aos banhistas" em beach clubs. Depois de reuniões, acordos e promessas sem resultado, a entidade moveu um processo enfocando somente a perturbação do sossego. Ganhou, mas não mudou nada.
– Não se conversava dentro de casa. Para assistir televisão, só com todas as portas e janelas fechadas. Noites em claro. Quanto tempo uma pessoa atura isso? Um associado, oftalmologista, simplesmente teve que cancelar as cirurgias que fazia às manhãs. Era impossível, não tendo dormido, operar alguém – conta Zucco, residente a 300 metros de onde naquele ano foi inaugurado o El Divino Beach (hoje Donna).
Em 2008, a Ajin entrou com a ação civil pública corrente. Cerca de cinco anos depois, MPF, AGU e Ibama reforçaram a causa. Em vez de poluição sonora, a questão principal passou a ser o uso irregular da área. Uma das constatações da perícia foi de que as construções dos beach clubs invadem pedaços de 3 a 25 metros quadrados de terrenos de marinha e se encontram em dunas cobertas por vegetação de restinga. Em 2014, em audiência de conciliação com a Ajin, a Habitasul se dispôs a criar uma reserva particular de patrimônio natural com 100 mil metros quadrados e doar 4,5 mil metros quadrados ao município para uma área pública de lazer. Não houve acerto. A associação quer que os beach clubs se enquadrem na legislação.
– Sempre que há uma transgressão do meio ambiente ou do patrimônio público, temos a obrigação de defender a lei. E a decisão judicial diz que é APP, diz que não pode construir. Nós não vamos discutir isso – afirma o procurador federal João Marques Brandão Néto.
Então como é que foram expedidos alvarás para esses beach clubs? O termo de ajustamento de conduta (TAC) firmado com a empresa em 2005, que estabelecia que poderia haver pontos de atendimento aos banhistas nos locais onde estão os beach clubs, foi observado? E quanto ao argumento de que o espaço já é explorado dessa forma há muito tempo? Nem todas as perguntas, por ora, têm resposta:
– Só posso dizer que não se faz usucapião de terra pública, pode estar lá quanto tempo for. Mas as questões da elaboração do TAC e da concessão dos alvarás têm pontos sigilosos por envolver outro processo, da Moeda Verde – comenta o procurador, referindo-se à operação que em 2007 investigou a negociação de licenças ambientais em Florianópolis.
A ordem para demolir os beach clubs pegou de surpresa tanto a Habitasul quanto os locatários dos cinco postos de praia afetados. Conforme o diretor da empresa, Carlos Leite, o histórico de ocupação da área remonta à década de 1980 e os beach clubs não se situam em terrenos públicos.
– As construções estão dentro de área privada, pois o loteamento é aprovado e registrado desde 1981 – garante.
A empresa questiona a decisão do juiz Krás Borges em vários quesitos. O advogado Rafael de Assis Horn aponta que o laudo pericial não detectou danos ao meio ambiente, somente um reduzido impacto, o que teria sido desconsiderado pelo magistrado. Outra contestação é sobre a caracterização da área como APP. Para ele, houve uma melhora ambiental após a chegada dos beach clubs.
– Ficou claro (na perícia) que não foi suprimida qualquer vegetação nativa pelo empreendedor. Porque ali, na verdade, existia plantação de eucalipto, era um acesso à praia. Não havia aquela vegetação exuberante que hoje divide a praia do loteamento, que é fruto do plano de recuperação ambiental custeado pela empresa com o objetivo de qualificar ainda mais a praia e manter os postos de praia funcionando. Agora esse acordo está sendo negado pelo MPF – sustenta.
Diretora do grupo e de Jurerê Internacional, Andrea Druck lembra que essa área plantada pela empresa faz parte do "cinturão verde" formado pela reserva ecológica Carijós e pela reserva particular, um dos três fatores fundamentais para que a praia fosse a primeira da América Latina certificada com o selo internacional de qualidade Bandeira Azul. Os outros dois foram o saneamento completo, sinônimo de balneabilidade perene, e os beach clubs, vistos como estruturas para uso sustentável da praia.
– Acabamos perdendo o selo em 2014 por conta desses desacertos entre Ajin e prefeitura – lamenta a diretora.
A Habitasul diverge também de que não poderia haver edificações no local por se tratar parcialmente de terrenos de marinha. A explicação para isso viria mais uma vez do histórico de ocupação da área. As antigas licenças para o loteamento, concedidas pelo então Ministério da Marinha, estipularam a porção edificável com base na leitura de 1951 da linha preamar média, o limite de 33 metros do mar estabelecido em 1831 para a aferição das áreas de marinha. Agora, uma modificação na delimitação desses terrenos pela Secretaria de Patrimônio da União (SPU) não poderia ser aplicada a imóveis já construídos.
No momento, a empresa tenta pelo menos suspender a demolição antes que o mérito da questão seja julgado por um colegiado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), com sede em Porto Alegre. Não está descartada nem mesmo a ida às instâncias superiores, em Brasília, em caso de novas negativas. A primeira delas veio no dia 6 de junho, recusando o pedido de efeito suspensivo.
A menos de duas semanas do cumprimento da sentença, a empresa e os beach clubs estão apreensivos. O proprietário do 300, Thiago Escher, já esperava a condenação na Vara Federal, mas não a derrota no TRF-4. Apesar de salientar que ainda não foi notificado – e, portanto, teria um prazo maior para cumpri-la –, ele não reconhece os danos ambientais denunciados pelo MPF.
– Os beach clubs ocupam menos de 5% de toda a orla de Jurerê. Demolir não vai resolver nada. Existem “ene” outras formas de se resolver. Além disso, já estava tudo pronto quando entramos (no final de 2014).
Escher calcula os prejuízos decorrentes da decisão. Além dos R$ 3 milhões investidos pela bandeira com atividades também em Porto Alegre, Gramado (RS) e Punta del Este, no Uruguai, o empresário terá que demitir os 24 empregados fixos (70 na alta temporada).
– Passo o dia recebendo ligações de funcionários chorando, dizendo que gostam de trabalhar ali. Tem vezes que estou sentado com a minha esposa e ela me pergunta no que estou pensando. “Não acredito no que está acontecendo”, é o que respondo. É uma coisa surreal.
No La Serena (ex-Taikô), não é diferente. Ao saber da notícia pela imprensa, o dono Leandro Adegas colocou seus 20 funcionários em aviso prévio. A estimativa da Habitasul é de que somados, os beach clubs deem trabalho a mais de 1 mil pessoas. Só o Donna alega gerar 110 empregos (215 no verão). Para reverter o quadro e, assim, evitar a perda dessas vagas, um dos argumentos do representante da casa e do Cafe de la Musique, Marcelo Dantas, é de que a perícia reconheceu os beach clubs em área urbana consolidada, não em APPs. O advogado admite, no entanto, a ocupação de pequenos espaços de marinha, o que avalia como razão insuficiente para impedir o funcionamento dos estabelecimentos.
– A área de uso comum do povo é a praia, e os beach clubs não estão em área de praia.
Dantas acredita em "formas mais razoáveis" do que decretar a remoção dos beach clubs para resolver a situação, pois seus clientes “estão dispostos a corrigir eventuais danos e se adequar à legislação”. Nesta segunda-feira, promete entrar com recurso pedindo que a decisão seja suspensa até que a matéria passe por uma ampla análise de todos os aspectos.
– Tenho esperança no bom senso. Florianópolis é o que é em termos de turismo muito por causa de Jurerê Internacional. E Jurerê Internacional é o que é muito em função dos beach clubs.
Esse é exatamente o ponto mais sensível à Ajin: o que Jurerê Internacional era e o que se tornou. O morador Luiz Carlos Zucco não está sozinho quando destaca que há mais de 20 anos escolheu o bairro para viver com a mulher e filhos atraído pelo conceito de um lugar tranquilo, organizado e seguro. Na sua visão, a mudança do uso previsto para os equipamentos à beira-mar acarretou na mudança do perfil do frequentador da praia.
– Não somos contra baladas, apenas entendemos que devam ocorrer em lugar adequado, não ao lado de nossas casas. Tivemos atropelamento com morte de uma turista por um motorista bêbado saindo de uma festa. A Avenida Búzios vira uma pista de corrida nas madrugadas. Flanelinhas ameaçando motoristas, o que não havia antes.
A intenção é trazer de volta "as famílias que lotavam a praia com a mesma intensidade que o baladeiro". O diretor jurídico da associação prega que isso só acontecerá com a retomada do planejamento que fez com que Jurerê Internacional fosse modelo de urbanização. Pela sua lógica, tirando-se o apelo da balada em um bairro criado para ser residencial, as famílias naturalmente retornarão.
– Queremos aquilo que adquirimos. Jurerê Internacional ficou famosa pela sua organização. Por causa dessa ideia de balada, uma casa para quatro pessoas é alugada para mais de 20. Aí elas promovem festas privadas, muitas com venda de ingressos e tudo, enchem o jardim de banheiros químicos… Esse é o futuro? – reclama Zucco.
O porvir é motivo de preocupação também para o presidente da Federação de Hotéis, Bares, Restaurantes e Similares do Estado (Fhoresc), Estanislau Bresolin. Ele considera a decisão da Justiça desastrosa para o trade turístico da cidade, com reflexos irreparáveis na alta e na baixa temporada: menos atrativos, menos exposição na mídia, menos dinheiro girando.
– Os tempos são outros. Toda praia tem reformas, modificações para progredir, para atender os anseios da sociedade. Não tem cabimento abrir mão do público dos beach clubs por intransigência de uma associação que nem representa a opinião de todos os moradores. A maioria, inclusive, mostrou-se favorável à manutenção desses equipamentos em uma pesquisa – ressalta.
Pelo levantamento, realizado pelo Instituto Mapa em janeiro de 2014, 84,2% dos 1.327 moradores consultados aprovavam o funcionamento dos beach clubs no bairro. Entre esses, 24,2% defendiam que as casas atuassem como restaurantes e 63%, que continuassem promovendo festas no final de tarde (os sunsets), respeitando as normas com relação ao horário e ao volume do som. Apenas 5,9% se mostraram favoráveis ao seu fechamento definitivo. O estudo foi encomendado pela Habitasul.
– Todo o setor espera que em algum momento surja a luz, seja da Justiça ou dos órgãos públicos. Nesta segunda temos uma audiência com a comissão de meio ambiente da Assembleia Legislativa para pedir o fim dessa arbitrariedade – completa Bresolin.
Todos os contrários à decisão batem na tecla da "insegurança jurídica" que a sentença provocará a quem possui imóvel na orla dos balneários florianopolitanos. Com 15 anos de experiência no ramo, Adegas afirma que será aberto um precedente para qualquer empreendedor à beira-mar e, como seu La Serena, qualquer um pode ser fechado. A posição é compartilhada pelo advogado Dantas, que enxerga um rigor maior com empreendimentos regulares do que com os clandestinos.A presidente da comissão de Direito Ambiental da seção catarinense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Rode Anélia Martins, vai mais longe:
– Eles (proprietários) têm os documentos. É uma decisão que deseduca, pois equipara quem constrói regularmente e irregularmente. Passa uma mensagem muito ruim.
Caso as demolições sejam confirmadas, completa ela, poderá haver um desestímulo ao comportamento ambientalmente correto. O raciocínio é o seguinte: em vez de construírem de acordo com a legislação, muitos podem partir para a irregularidade, na crença de que provavelmente "dará no mesmo".
Parecer semelhante tem o procurador-geral do município, Alessandro Abreu. Segundo ele, como a perícia teria constatado que não há comprometimento do entorno dos beach clubs nem novos riscos ao meio ambiente, haveria outras formas de a compensação ambiental ser feita.
– É um posicionamento institucional nosso. A retirada dos beach clubs em nada vai contribuir – afirma.
O procurador acrescenta que existem outras ações do MPF questionando a presença de imóveis próximos ao mar em bairros como Joaquina, Santo Antônio, Ingleses e Canasvieiras, e que isso pode levar a uma escalada de demolições. Logo, o mais sensato seria aguardar uma decisão colegiada.
– Pode se estar discutindo em uma única ação o futuro de Florianópolis – diz Abreu.
O Ibama contesta essa visão de Abreu. Segundo o órgão, a demolição é necessária por se tratar de uma APP e para a recuperação do local degradado, com responsabilidade imprescritível pelo dano ambiental.
Se depender da Ajin, a coisa não vai parar por aí. Zucco explica que o P12 foi o único beach club de Jurerê Internacional poupado na ação porque não existia ou não era problema. Mas não está livre de ser autuado, "pois de eventos para uma a duas mil pessoas, passou a fazer para sete, oito mil".
– É típico desses estabelecimentos começar devagar e ir assimilando a tolerância dos vizinhos e ampliando o negócio – acusa.
Como reza o clichê, a festa – ou melhor, o imbróglio, não tem hora para acabar.