"Percebe-se logo que Porto Alegre é uma cidade muito nova. Todas as casas são novas, e muitas estão ainda em construção. Talvez depois do Rio de Janeiro, não vi cidade tão suja". Assim o viajante e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire descrevia a cidade em 1820.
No mesmo período, no Rio, dada a falta de banheiros, o "lixo e os dejetos das casas eram atirados à rua ou despejados nas praias", como escreve o jornalista Laurentino Gomes, no livro 1822. Mesmo nos arredores do palácio da Quinta da Boa Vista, então moradia da família real portuguesa - que havia fugido da metrópole e se estabelecido na colônia com medo da invasão francesa durante as guerras napoleônicas -, não havia calçamento e o resultado, na estação chuvosa, "era um grande lamaçal".
O problema do Brasil com o lixo, ao longo da história, é tanto do poder público quanto do cidadão. A sujeira da Capital, a incontável quantidade de bitucas de cigarros pelas ruas, a necessidade de desviar de minas de cocô de cachorro no chão ao caminhar pelas calçadas irregulares e as paradas de ônibus sujas e degradadas têm a mesma origem: o descaso com o espaço público.
- A responsabilidade é sempre do outro. O modelo brasileiro ideal é que alguém, o outro, faça - explica o antropólogo Roberto DaMatta.
O autor de O que faz o brasil, Brasil? lembra que a diferença com que tratamos o espaço privado e público é marcadamente dividido. A rua, sendo de todos, é tratada como se fosse de ninguém. O que reflete, segundo DaMatta, uma cabeça antidemocrática:
- O modelo brasileiro ideal é que alguém engraxe o seu sapato. Numa sociedade que se deseja mais democrática, começa a ter uma pressão entre os poderes públicos para resolver o problema.
A multa prevista a quem jogar lixo na rua prevista pelo novo Código Municipal de Limpeza Urbana de Porto Alegre, que entra em vigor na segunda-feira, é, portanto, uma maneira de ajustar os costumes tradicionais a partir do confronto com leis que sejam consistentes com o que a sociedade deseja ser. A lei do Lixo Zero, em vigar no Rio de Janeiro, segue a mesma tendência.
- Em Lisboa, a multa para quem não pegar o cocô do próprio cachorro é de 727 euros, são quase R$ 3 mil - diz Darci Campani, professor de gestão ambiental da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Campani também acha que o problema do lixo é uma questão cultural:
- Se não há o trabalho da fiscalização, as pessoas relaxam. Essa cultura precisa ser sempre ser incentivada.
O professor acredita que, por causa dos 24 anos de coleta seletiva, o porto-alegrense tem um posicionamento diferenciado em torno da questão do lixo.
Se atualmente a Capital é diferente do resto do país, na época do Império seguia o padrão das demais regiões do Brasil. Até 1851, quando o reinado de Dom Pedro II instituiu a Junta de Higiene Pública, a responsabilidade de limpeza das ruas era de quem nela morasse - de ninguém, na prática. A Junta fracassou, mas lançou as bases para a criação dos primeiros serviços públicos de saneamento.
Se hoje, conforme do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU), a Capital do Estado produz 2,2 mil toneladas de lixo por dia (o equivalente a 366 caminhões com seis toneladas cada), para retirar os resíduos da cidade cem anos atrás eram necessárias 120 viagens diárias de carroça.
Um município com 100 mil habitantes até consegue absorver o impacto da sujeira, mas quando vai se aproximando de 1 milhão, é difícil manejar o problema. Porto Alegre só conseguiu se afastar das palavras de Saint-Hilaire, quando se livrou dos seus dois lixões no início dos anos 1990, conta o professor Campani. A ideia, então, de uma cidade mais limpa começou a se aproximar da realidade também pelo impacto da sujeira e da poluição na vida cotidiana e do crescimento da consciência ecológica a partir dos anos 1980.
Não que o lixo tenha sumido: agora uma pequena parte da coleta seletiva vai para a Lomba do Pinheiro e o restante, para o aterro sanitário em Minas do Leão. Dado que a rua não se suja sozinha, agora falta o próximo passo: a mudança cultural.
- A cidade é sua. A cidade está com você. Você não pode, ao sair de casa, se colocar contra a rua. Você é um contribuinte para que a rua seja civilizada e limpa. A casa está junto com a rua, não em oposição - diz o antropólogo DaMatta.
DaMatta alerta que uma lei que multa o cidadão por seus pecados urbanos, como jogar o lixo no chão, tem um outro lado: se o Estado cobra com maior rigidez, dá o direito para que o eleitor cobre seus da deveres da mesma maneira. Resta saber se finalmente o cidadão e o poder público poderão declarar trégua nas ruas.
A evolução limpeza urbana de Porto Alegre
1851 - Governo Imperial cria a Comissões de Higiene Pública na províncias Rio Grande do Sul.
1912 - Concluído o projeto que previa uma rede de canalização em Porto Alegre.
1938 - Implantada a coleta noturna na cidade.
1979 - Implantação de aterros de resíduos sólidos.
1990 - Lixão da Zona Norte é convertido em um aterro controlado.
2011 - Início do processo de automatização da coleta domiciliar.