Sempre teremos Viena
Sim, ele perdeu mesmo o avião.
Na última vez que os vimos, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) estavam no apartamento dela, em Paris, ouvindo Nina Simone e preparando uma segunda despedida, quando ela olha para ele e diz, meio a sério, meio brincando: "Você vai perder o voo, baby". E ele, rendido, apenas concorda: "Eu sei".
Em Antes da Meia-Noite, que estreia nesta sexta, ficamos sabendo que não apenas Jesse perdeu aquele avião como deixou a mulher e o filho nos Estados Unidos e vive agora na França com Celine e as duas filhas gêmeas do casal - que se conheceu e se perdeu aos 20 e poucos em Antes do Amanhecer (1995) e se reencontrou e se reapaixonou aos 30 e poucos em Antes do Pôr do Sol (2004).
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A terceira parte da cultuada trilogia do diretor americano Richard Linklater retoma a estrutura básica dos dois filmes anteriores: Jesse e Celine caminham e conversam, namoram e discutem, riem e falam sério. Depois de Viena e Paris, o cenário agora é o sul da Grécia, onde o casal passa férias com os filhos. A paisagem é deslumbrante e quase um clichê de lua de mel, mas Jesse e Celine não estão ali para namorar, e sim para definir até que ponto o sentimento que os aproximou anos antes é um legado a ser mantido ou apenas a ruína de uma grandeza perdida.
Talvez seja justamente a passagem do tempo o eixo central do roteiro escrito a seis mãos pelo diretor e pelos dois protagonistas. As diferentes percepções do tempo e a memória são o tema do novo livro que Jesse está escrevendo e também o assunto da alegre refeição em que jovens e velhos conversam sobre amores maduros, paixões recentes e transitoriedade. Quando, mais adiante, Celine narra melancolicamente os últimos instantes que separam o dia do início da noite, parece estar sugerindo que, como tudo que nasce e morre, a paixão solar vista em Antes do Amanhecer e Antes do Pôr do Sol pode também estar chegando ao fim de um ciclo.
A cena do pôr do sol antecipa a última parte do filme - que pode, ou não, ser a última parte da série que conquistou fãs de todas as idades nos últimos 18 anos. Neste epílogo, encontramos Jesse e Celine como nunca os vimos antes. O que nos filmes anteriores era sedução e encantamento transforma-se em um amargo duelo de queixas mútuas de um casal que, próximo da meia-idade, já vê o futuro ficando mais curto e o presente mais difícil de manipular.
Ele lamenta ficar longe do filho adolescente, que mora nos EUA com a mãe. Ela reclama das ausências e das traições. Ele acha que ela reclama demais e vive querendo que ele seja uma pessoa que ele não é. Ela diz que ele se tornou um amante burocrático e que não dá o devido valor ao trabalho dela fora ou dentro de casa. (Alguém aí já viu alguma discussão parecida?)
O embate lembra, em alguns momentos, a radiografia da falência amorosa vista como nunca antes em Cenas de um Casamento (1973), obra-prima de Ingmar Bergman, com discussões adaptadas para a realidade do século 21: pais que se sentem despreparados para criar os filhos, famílias em crise, mulheres sobrecarregadas, homens confusos, amores líquidos...
Será que o relacionamento de Jesse e Celine terá o mesmo final que o de Johann (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann)? Uma subversão na lógica inviolável do tempo, na forma de uma carta supostamente enviada desde o futuro, decidirá o destino dos personagens. O certo é que o público, como nos filmes anteriores, sai do cinema torcendo para que Jesse e Celine continuem viajando pelo mundo, e para o futuro, levando todos nós na carona. Antes que o mundo acabe.
O que rolou nos filmes anteriores antes de Celine e Jesse voltarem a discutir a relação, agora em Antes da Meia-Noite:
ANTES DO AMANHECER (1995)
O lugar: Viena, Áustria. Celine, estudante francesa, e Jesse, turista americano, se conhecem no trem que partiu de Budapeste, na Hungria. Ela foi visitar a avó. Ele faz um giro pela Europa. Pinta um clima, e Jesse pede para Celine postergar a ida a Paris e lhe fazer companhia em Viena até a manhã seguinte, quando ele pegará o avião para os EUA. Ela fica feliz com o convite.
O papo: Jesse acabou de tomar um fora da namorada americana, a quem foi visitar em Madri, e agora, já com pouca grana, vai voltar para casa. Celine, com 23 anos, está indo para a faculdade. Conversam em inglês porque ela estudou nos EUA e na Inglaterra. Falam sobre os relacionamentos de seus pais (os dele postergaram o divórcio para manter as aparências de família feliz, os dela, militantes do Maio de 68, mantém a paixão inflamada), brincam com estereótipos culturais e falam de planos para o futuro (Jesse pensa em produzir um programa de TV tipo reality show). Durante o passeio por Viena, visitam um cemitério, consultam a sorte com uma cigana, bebem muito café, descobrem afinidades e se beijam. Compartilham o receio de um dia acomodarem o espírito desbravador da juventude. Celine acredita no amor, mas sempre acha que seus momentos especiais até então foram com a pessoa errada. Jesse acha o amor um sentimento egoísta, se vê como bom pai mas não vivendo 10, 20 anos com a mesma pessoa. Questionam a existência de Deus (ela acredita), temem "morrer sem ter vivido", confidenciam intimidades e neuroses. Entram madrugada adentro num parque, com uma garrafa de vinho e deitados na grama (transar ou não transar, eis a questão). Chega a hora da despedida. Combinam de se encontrar dali a seis meses, na mesma estação de trem de Viena.
O mundo: Celine faz referência à guerra travada ali perto, nos Bálcãs, criticando a indiferença dos países desenvolvidos que "não fazem nada" para acabar com a mortandade - em 1995, ocorreu o massacre de Srebrenica, maior assassinato em massa da Europa desde a II Guerra. Na pré-história da internet, Celine e Jesse descartam manter contato por carta e telefone. Um momento encantador do filme, sobretudo para a geração Instagram, é quando Jesse diz que vai tirar uma fotografia de Celine, para fixá-la na memória, o que faz apenas olhando para ela com por um longo e apaixonado instante, que nenhum dos dois jamais esquecerá.
ANTES DO PÔR DO SOL (2004)
A viagem: Paris, França. Em vez de seis meses, Celine e Jesse se reencontram nove anos depois, quando ele vai à França lançar um livro - que fala do dia que eles passaram em Viena.
O papo: Jesse fica supresso com o reencontro e, como tem algumas horas até seu voo partir, convida Celine para dar uma volta por Paris. Ela explica que não pôde voltar a Viena, como combinaram, porque naquele exato dia marcado por eles ocorreu o enterro de sua avó, aquela de Budapeste. Ele foi e ficou muito abalado pela frustração. Jesse diz que o livro foi escrito com a esperança de forçar esse reencontro, pois jamais esqueceu aquele dia em Viena, e que Celine nunca saiu de seus sonhos e pensamentos. Celine confessa que ficou abalada pela leitura e que sente o mesmo. Passeando por Paris, falam de suas frustrações amorosas e do medo de envelhecer sem realizar sonhos, de como os anos avançam de maneira cada vez mais rápida. Ele tem um filho de quatro anos e se vê preso em um casamento sem amor. Ela agora é cética sobre relacionamentos, pela dor que o inevitável rompimento provoca, como o que mantém à distância com um fotógrafo. Celine formou-se em ciências políticas e trabalha numa ONG ambientalista, mas diz que gostaria de se dedicar à pintura, à música e aprender chinês. Ela já rodou o mundo em atuando em causas humanitárias e se vê como uma eterna deprimida _ não acredita mais em Deus e nem no amor. Eles prospectam: e se tivessem se reencontrado em Viena? Teriam suportado a rotina? Estariam juntos? Jesse leva Celine em casa, onde ela canta a canção que fez para ele, tão intensa e apaixonada quanto o livro que ele escreveu pensando nela. Depois, ao som de Nina Simone, Jesse sorri ao ser perguntado se não teme perder o voo, por já saber onde é seu lugar.
O mundo: Celine, por conta de sua militância, pontua suas conversas com Jesse com temas que ganhavam destaque à época, como aquecimento global, o consumo predatório das reservas naturais, a exploração de mão de obra barata no Terceiro Mundo e o poder da indústria bélica (em 2003, os EUA invadiam o Iraque, ampliando a tensão internacional decorrente do 11 de Setembro).
EM CARTAZ:
Cinemark Ipiranga 1 (17h10)
Cinespaço Wallig 6 (13h30, 17h30, 21h30)
GNC Moinhos 3 (15h30, 17h40, 22h)
GNC Moinhos 4 (19h45)