O 1º de maio de 1994 estará, para sempre, na memória do esporte e do automobilismo. Na curva Tamburello, no autódromo de Ímola, o esporte brasileiro perdeu um de seus maiores ídolos. Naquela manhã de domingo, Ayrton Senna da Silva saiu de cena para se eternizar no panteão dos heróis do Brasil.
Senna foi um cidadão do mundo. Antes de ser um dos rostos mais conhecidos do planeta e tricampeão de Fórmula 1, um jovem promissor esteve duas vezes no Rio Grande do Sul para participar de competições de kart. Já piloto da principal categoria do esporte a motor, ele levou para dentro do cockpit a bandeira do Brasil para celebrar sua história. A primeira vez que a cena icônica surgiu foi com raízes gaúchas.
Estas histórias são contadas a seguir, em um material especial para lembrar os 30 anos de sua morte.
A bandeira do Brasil para comemorar vitórias
“The answer, my friend, is blowin' in the wind”, esse e outros versos de sucessos de Bob Dylan ribombavam na cabeça de Luiz Carlos Ferronato naquele junho de 1986. O produtor cultural deixou Caxias do Sul para assistir a um show do compositor americano nos arredores de Toledo, no estado de Ohio, nos Estados Unidos.
Ele sabia que a poucos quilômetros dali teria uma corrida de Fórmula 1. A prova até fazia parte do seu roteiro pela América do Norte, muito mais por insistência dos amigos do que por vontade própria. Os únicos ícones que faziam parte do seu interesse eram as músicas do Bardo Fanho. Sequer tinha ideia de que naqueles dias ajudaria a criar uma das imagens mais emblemáticas do esporte mundial.
Antes de embarcar para os EUA, Ferronato comprou algumas camisas e bandeiras do Brasil para presentear americanos que cruzassem o seu caminho. A gentileza foi um sopro de sorte.
Ferronato estava acompanhado de uma turma boa, seus amigos de longa data Jimy Uez, Gilmar Signori e Luis Fontana, além de amigos dos amigos. Eram cerca de 10 pessoas vestidas em motivos verde e amarelos. Entre eles Bud Wilson e o também caxiense Ricardo Rossi, o Caco. Os dois foram figuras essenciais para o que estava por vir.
— O hotel dos pilotos ficava a três quadras da pista, eles vinham pelo meio do público. Conversamos com o Ayrton Senna e o Alain Prost no meio da rua. Pena que não tinha celular na época — conta Ferronato.
Bud era tetraplégico. Em tempos em que a acessibilidade não era uma preocupação, era impossível acessar as arquibancadas com um cadeirante. A organização do evento abriu uma exceção para a turma. Eles ficaram em um espaço a cerca de 10 metros da pista, entre a grade que separava a pista dos fiscais e outra que reforçava a proteção aos torcedores.
Rossi era viciado em automobilismo. Levou consigo um cronômetro. Sabia o tempo de volta de Senna. Cada vez que o brasileiro, então na Lotus, estava próximo de passar, avisava os companheiros para fazerem uma algazarra. Senna venceu a corrida, sua quarta vitória na Fórmula 1.
— Na última volta, o Senna nos viu, reduziu a velocidade e pediu uma bandeira. O fiscal veio correndo, pegou bandeira e entregou para o Senna. O fiscal de pista ficou tão feliz que me deu o colete que ele vestia — relembra Ferronato.
Era a primeira vez que um piloto parava na pista para pegar uma bandeira e fazer a volta da vitória exaltando o seu país de origem.
A turma barulhenta saiu nas capas dos jornais de Detroit. A Fórmula 1 ganhou uma imagem icônica. Senna conquistou um admirador. Tanto que Ferronato voltou à cidade para ver a edição de 1988, quando Senna estava na McLaren.
— Uma das coisas mais emocionantes da minha vida — confessa Ferronato.
A imagem de Senna com a bandeira do Brasil sopra através do tempo, mesmo após 30 anos de sua morte.
As histórias de Senna em Tarumã
Em 16 de julho de 1978, a maneira mais fácil para reconhecer que Ayrton Senna estava no Kartódromo de Tarumã era pelo estilo de pilotagem. Escondido sob um capacete branco com detalhes azuis e um macacão todo laranja, ninguém identificaria que ali estava o piloto que marcaria a história do Brasil com as cores da bandeira do país adornando o equipamento que protegia sua cabeça.
Os traços do futuro campeão estavam presentes na pista. Velocidade e ousadia marcaram a sua performance naquelas três baterias em Viamão. Para chegar à Região Metropolitana, Senna enfrentou a solidão da estrada.
Com 18 anos recém-completados, Ayrton saiu de São Paulo sozinho na caminhonete do pai Milton, poucos dias após ter tirado a carteira de motorista. Os mais de mil quilômetros entre São Paulo e Porto Alegre foram percorridos apenas com a companhia do seu kart. A empreitada foi para competir no Brasileiro de Kart daquele ano.
Senna se hospedou em um hotel na Avenida Farrapos, junto com o amigo Maurício Gugelmin — o paranaense também correu na Fórmula 1. Os dois foram juntos até Viamão. Chegando lá, o futuro tricampeão mundial se deu conta de que tinha esquecido algumas anotações.
— Ele pediu a caminhonete do Gugelmin e veio de volta para Porto Alegre. Foi multado por excesso de velocidade na ida e na volta — relata o jornalista Lemyr Martins, autor do livro “Uma Estrela Chamada Senna”.
Foi um dos primeiros grandes domingos que estavam por vir. Senna conquistou o título das 100cc, disputado em três baterias.
Quatro anos depois, retornou a Tarumã. Ali, seu nome estava consolidado como piloto de kart. A ele se reservava um futuro promissor no automobilismo. A pintura do capacete já era a que passou a ser o seu rosto na tela dos televisores do Brasil e do Mundo. Em disputa estava o Pan-americano de Kart.
— No primeiro dia de treino, a fera não tinha aparecido ainda. No dia seguinte, chegou um caminhão, chegou a fera. Vi que ia brigar pelo segundo lugar — relembra Renato Russo, campeão brasileiro de kart no ano anterior.
Era um domingo quente, de encharcar o macacão. Cansado, suado, agachado em frente ao box, Russo viu Senna se aproximar com o icônico capacete em mãos.
— Ele já era o cara lá fora, na Europa. Ele veio e disse: “você é folgado hein, moleque". Foi a glória. Ganhei o dia. Não precisava nem ganhar o Pan-Americano — relembra Russo.
O gaúcho Neco Fornari ficou com o segundo lugar na soma das três baterias. Hoje, recorda da disputa, tachada por Senna como tentativa de “ultrapassagem um tanto forçada”, com orgulho.
— Faltou experiência, quis mostrar tudo o que sabia. Devia ter escondido um pouco, para ter um elemento surpresa. Batemos roda com roda e levantou a plateia.
Ciente de que as glórias maiores estavam no horizonte, Senna concedeu um depoimento tão tranquilo quanto realista do que se passou na pista de Tarumã naquela tarde.
— Foi relativamente fácil. (Na terceira bateria), eu já era campeão. Esta bateria foi mais fácil ainda. Foi uma vitória muito importante na minha carreira — enfatizou à época.
Dois anos depois, Senna estreou na Fórmula 1 para construir uma das trajetórias mais marcantes da categoria. Uma história que passou pelas curvas do Kartódromo de Tarumã e pela bandeira entregue por Ferronato e sua turma.