Na quarta-feira, o técnico que venceu a última Libertadores da América fez sua estreia pelo Flamengo. As credenciais de Reinaldo Rueda poderiam incluir apenas os clubes por onde passou e os títulos que conquistou, mas pouco se falou disso. Em vez de ter virtudes e defeitos citados, Rueda chamou a atenção pelo local que consta em sua certidão de nascimento. O fato de ser estrangeiro tornou-se maior do que ser bom ou mau treinador.
A polêmica se escancarou a partir de uma declaração de Jair Ventura, técnico do Botafogo que depois o enfrentaria na semifinal da Copa do Brasil:
– Não que eu seja contra os estrangeiros trabalharem aqui, mas estamos perdendo mercado já fora. Daqui a pouco perdemos o interno. Desejo sorte ao Rueda, mas temos que repensar. Estão tirando o espaço dos outros que querem trabalhar.
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A resistência aos comandantes que vêm de fora não se limita a Jair, que depois até se desculpou pelas declarações. É algo cultural do futebol brasileiro, alimentado pelo fato de que os técnicos estrangeiros com passagens recentes por aqui tiveram vida curta e não venceram grandes competições. Mas por que treinadores de fora não têm passagens marcantes por aqui?
O tempo de permanência ajuda a explicar. Levantamento do ano passado aponta que o Brasil é campeão de impaciência com técnicos. À época, os treinadores daqui ficavam em média 5,7 meses à frente dos clubes da Série A. Na França, a liga que dá mais tempo para que o trabalho se consolide, são 16 meses.
– A gente dá para o técnico estrangeiro o mesmo tempo que dá para o brasileiro. Se você não privilegiar o trabalho, o treinador pode vir de Marte que não vai funcionar – afirma Paulo Vinicius Coelho, o PVC, comentarista dos canais Fox Sports.
A necessidade de dar sequência ao trabalho se acentua quando há barreiras importantes a ultrapassar. A do idioma é evidente e há, também, questões culturais. Mas o obstáculo que chama mais a atenção diz respeito à metodologia de trabalho. Trazer alguém de fora frequentemente implica na introdução de novos tipos de treinamento, novos jeitos de pensar o futebol.
– O brasileiro em geral tem de entender que o futebol tem muitas verdades, não só uma. Isso tem de ser passado aos jogadores. Se o jogador escuta que a única escola que presta é a brasileira, não vai acreditar em outras verdades. Por isso que, muitas vezes, quando o jogador brasileiro vai para a Europa, custa duas, três temporadas para se adaptar – avalia Jorge Fossati, com passagem pelo Inter em 2010.
– Talvez a mentalidade do futebol brasileiro seja um pouco mais fechada, ou era na época em que eu estive no Inter. Talvez o nosso trabalho fosse criticado por ignorância, por não se olhar o que se faz na Europa e por não se saber como trabalham os times de melhor nível mundial – disse Diego Aguirre, que comandou Inter e Atlético-MG, em entrevista recente a ZH.
Outro exemplo de técnico estrangeiro de vida curta é o de Juan Ramón Carrasco, uruguaio que passou pelo Atlético-PR em 2012. Com o time na Série B do Brasileirão e sem o estádio, em obras para a Copa do Mundo, fez ótima campanha no Paranaense e perdeu a decisão nos pênaltis para o Coritiba. Na Copa do Brasil, eliminou o Cruzeiro e chegou às quartas de final. Mas bastou uma oscilação no início da Série B para que fosse mandado embora.
Contatado por ZH, Carrasco soube da frase de Jair Ventura e devolveu com ironia:
– Diga ao técnico do Botafogo que, se não quer treinadores estrangeiros, que faça seu time jogar como um verdadeiro clube brasileiro, o que ele não faz (risos).
Resistência dos técnicos
A resistência de treinadores brasileiros a técnicos de fora tem um motivo importante. Os cursos no Brasil não são reconhecidos na Europa. Quem "tira a carteirinha" na Argentina, por exemplo, tem portas abertas para o Velho Continente.
Não à toa há abundância de hermanos fazendo sucesso lá fora, como Diego Simeone no Atlético de Madrid e Mauricio Pocchetino, arquiteto do bom Tottenham vice-campeão inglês. Os brasileiros se veem com os caminhos limitados e, naturalmente, reagem quando consideram que estão perdendo espaço por aqui.
– Vejo isto como uma miopia do treinador nacional. As últimas passagens de estrangeiros pelo Brasil forneceriam um espetacular argumento para os treinadores brasileiros cobrarem melhoria nas condições de trabalho. Osorio, Bauza, Aguirre, Portugal, Gareca, nenhum ultrapassou sete meses. O treinador brasileiro tinha todas as razões para mostrar que todos sucumbiram quando submetidos às mesmas pressões que o técnico daqui sofre. Onde eles estão vendo uma ameaça, há uma oportunidade – argumenta Carlos Eduardo Mansur, colunista de O Globo.
Há um dado que indica que os próprios técnicos daqui poderiam abrir seus caminhos lá fora. Na Argentina, não é da federação do país o principal curso de treinadores. Quem o organiza é a Associação de Técnicos do Futebol Argentino (ATFA), entidade fundada em 1963. Talvez, se nossos comandantes de casamata fossem suficientemente unidos para sustentar uma associação forte, pudessem ter mais espaço nas grandes ligas do Exterior.
– O que eu percebo no Brasil é que está procurando isolar, ou proteger, fazer um protecionismo do mercado interno, mas ao mesmo tempo se está exigindo que o mundo abra as portas para os treinadores brasileiros. Uma grande contradição – afirma Leo Samaja, coordenador da ATFA no Brasil.
A associação argentina tem uma equipe por aqui para dar suporte a alunos dos cursos online. Foi o último país da América Latina a ganhar representantes da ATFA. Entre os clientes estão alguns jogadores e ex-jogadores conhecidos como D'Alessandro, Aimar, Zabaleta e Demichelis.
A abundância de bons treinadores bem ao nosso lado é resultado de uma cultura de futebol diferente, que coloca maior ênfase na parte tática, um aspecto que tornou-se mais importante ao longo dos anos.
– Há treinadores uruguaios, paraguaios, fazendo sucesso na Argentina. Esse compartilhamento de informações é muito importante – diz Samaja.
Enquanto isso, no Brasil, há movimentos ainda tímidos para se afastar da ideia de que o talento basta para vencer.
– Temos um vazio de cultura de formação dos técnicos. Sempre foi uma atividade empírica, a gente sempre achou que o jogador resolvia, que técnico não ganha jogo nem campeonato. E aí, não temos nem bibliografia. O Ênio Andrade talvez tenha sido o melhor treinador gaúcho de todos os tempos. Mas como ele treinava? O que ele pensava sobre futebol? Isto não está escrito em lugar algum! – lembra PVC, que complementa:
– Em 1989, foram criadas academias de futebol em Portugal que passaram a documentar essas questões. Foi formado um centro de cultura do futebol. Discutem muito mais o jogo. Amplia o espectro, de maneira que você para de discutir se um técnico fez um bom trabalho em três meses, porque você sabe que três meses não é nada. Nossa cultura é jogar e, se ganhar, vai adiante. Se não, troca.
É assim que o futebol brasileiro se fecha numa bolha que deixa de fora novos métodos e ideias.
– Quando estavam Osorio e Aguirre por aqui, qual o tema que mais se discutiu? Rodízio de jogadores. Quando houve essa discussão aqui, seja ela certa ou errada? Os estrangeiros trazem para a agenda uma questão que você deixa de abordar se você se encerrar – afirma Mansur.
Rueda tentará estourar essa bolha e ter resultados, a única garantia de permanência de um técnico no Brasil. Se conseguir, talvez nos dê novas ideias e conceitos para enriquecer um debate que, de tão limitado, é capaz de criticar a chegada de um multicampeão porque ele nasceu na Colômbia.
Relembre passagens recentes de técnicos estrangeiros no Brasil
Juan Carlos Osorio, Colômbia
São Paulo (2015)
28 jogos
12 vitórias
7 empates
9 derrotas
51,19% de aproveitamento
Edgardo Bauza, Argentina
São Paulo (2016)
48 jogos
18 vitórias
13 empates
17 derrotas
46,52% de aproveitamento
Miguel Ángel Portugal, Espanha
Atlético-PR (2014)
13 jogos
5 vitórias
2 empates
6 derrotas
43% de aproveitamento
Ricardo Gareca, Argentina
Palmeiras (2014)
13 jogos
4 vitórias
1 empate
8 derrotas
33% de aproveitamento
Diego Aguirre, Uruguai
Inter (2015) e Atlético-MG (2016)
No Inter
48 jogos
24 vitórias
15 empates
9 derrotas
60,4% de aproveitamento
No Atlético-MG
31 jogos
16 vitórias
7 empates
8 derrotas
59,14% de aproveitamento
Paulo Bento, Portugal
Cruzeiro (2016)
17 jogos
6 vitórias
3 empates
8 derrotas
41,17% de aproveitamento
* ZH Esportes