O lado glamouroso do êxodo de craques brasileiros para o Exterior desfila na TV a cada final de semana de rodada das principais ligas da Europa. Neymar é foco das câmeras quando entra em campo pelo Paris Saint-Germain, e Gabriel Jesus ganha cânticos em sua homenagem da torcida do Manchester City. Enquanto isso, o mundo subterrâneo das transações para fora do Brasil inclui fraude, salários atrasados e passaportes retidos para impedir que os jogadores voltem para casa.
Dirigentes de clubes e empresários mal intencionados aproveitam-se do sonho alimentado pelos holofotes dos principais campeonatos europeus. Levam a jovens a promessa da fortuna além-mar e os atiram em aventuras perigosas, que muitas vezes resultam em experiências traumáticas até no fim de suas trajetórias dentro das quatro linhas. É a realidade crua de parte das transferências, turbinada pelo desejo dos jogadores de fazer carreira e dinheiro longe do Brasil.
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Não se trata apenas do velho problema de adaptação – os obstáculos da língua, a saudade, a falta do arroz com feijão. São exemplos mais extremos, como o de Edinho, ex-Grêmio e Inter, que no início da carreira foi levado à França por um empresário e abandonado, sem clube, por lá. Chegou a passar fome antes de ser salvo por Fernandão, então atacante do Olympique de Marselha, que o abrigou em sua casa. Diego Souza, hoje estrela do Sport Recife, passou sufoco no Al Ittihad, da Arábia Saudita, onde teve seu passaporte retido pelo clube, que atrasava salários e não queria que o brasileiro retornasse para casa. Luan, volante formado na base do São Paulo, aventurou-se na Itália imaginando contar com o interesse da Roma para depois descobrir que fora ludibriado pelo agente. E há o caso de Rafael Kneif, lateral-esquerdo que passou pela base de Flamengo e Corinthians, subiu para o time principal no Coritiba e foi para a Romênia, onde recebeu apenas metade do primeiro salário nos seis meses em que esteve lá. Desiludido com o lado mais sombrio da profissão em que sempre sonhou triunfar, abandonou os campos. É um ex-jogador de 25 anos de idade.
A cena de futebolistas brasileiros em apuros no Exterior é mais comum do que se pode imaginar. Tanto que, em 2012, o Itamaraty fez uma cartilha, em parceria com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), com orientações para evitar que atletas caíssem no conto do vigário. O manual fez parte de uma extensa campanha que incluiu o contato de embaixadas brasileiras com federações de futebol de outros países. O problema, porém, está longe de ser solucionado.
– É muito comum. Chegamos a monitorar 20 a 30 casos ao mesmo tempo. São problemas de extorsão e má-fé. O público-alvo são jogadores de futebol jovens, pouco ou nada conhecidos. Eles são descobertos por pessoas inescrupulosas, e esses jovens imaginam que aquela oportunidade apresentada é de ouro, que vão começar uma carreira de sucesso no Exterior – relata Maria Luiza Lopes da Silva, chefe do Departamento Consular e de Brasileiros no Exterior do Ministério das Relações Exteriores.
– São pessoas que se dizem agenciadores ou empresários. Ao contrário do que deve ser uma transferência internacional, com assinatura de contrato de trabalho antes da ida, com todas as garantias, os jogadores acreditam que devem ir com visto de turista, para depois fazer o teste no clube e, conforme o desempenho, assinar o contrato. Em casos extremos, dá tudo errado: o agente já cobra uma comissão aqui no Brasil e a extorsão é feita antes do embarque – completa.
A quantidade de jogadores que se aventuram fora do país dificulta o trabalho de brecar quem os engana. Só na última janela de transferências, entre janeiro e abril deste ano, 614 atletas deixaram o Brasil. Esse é o número de transações oficiais. Não há como contabilizar quem se deixa enganar por falsas propostas e parte na esperança de que, em um teste, algum clube veja seu potencial e decida bancar sua permanência.
Outro fator que impede um controle mais efetivo é o fato de que os golpes não têm endereço certo. Em 2012, o Itamaraty agiu para alertar países em que houve casos de atletas pedindo socorro às embaixadas. Contou com a colaboração das autoridades locais para evitar novos episódios. Nos últimos dois anos, porém, foram outras nações que registraram casos de atletas brasileiros em apuros. Vê-se que o rastro dos empresários aproveitadores e dos clubes mal intencionados se espalha. A fábrica de fraudes, para desespero de quem é atirado à própria sorte longe de casa, parece ser tão produtiva quanto a de talentos brasileiros.
Números do êxodo
– Na última janela de transferências de jogadores do Brasil para o Exterior, entre janeiro e abril deste ano, 614 jogadores deixaram o país para atuar em clubes de fora.
– De acordo com apuração da Revista Época, os clubes brasileiros lucraram R$ 957 milhões com transferências de jogadores brasileiros para o Exterior entre o início deste ano e o fim do ano passado. O valor para o mesmo período do ano passado foi de R$ 386 milhões.
– A diferença se acentua ainda mais se considerarmos o período entre 20 de junho e 20 de julho em 2016 e 2017. A janela de transferências "mais quente" (o verão do Hemisfério Norte coincide com a mudança de temporada futebolística, por isso os clubes estrangeiros costumam investir mais no período) foi turbinada de um ano para o outro. Em 2016, foram mais de R$ 119 milhões investidos em jogadores brasileiros. Neste ano, o número subiu para quase R$ 612 milhões.
– A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) demonstrou preocupação com o fato de que clubes estrangeiros fizeram consultas à entidade a respeito de 146 jogadores que sequer tinham registro junto à confederação.
– Relatório de maio deste ano aponta que, no total, 1.202 jogadores brasileiros atuam no Exterior.
– A França, com 781, e a Argentina, com 753, vêm logo atrás entre os países campeões no êxodo dos jogadores. No top 10 dos exportadores ainda estão Sérvia, Inglaterra, Espanha, Alemanha, Croácia, Nigéria e Uruguai.
– Portugal é o destino mais frequente dos brasileiros, com 221 atletas atuando no país. A Itália, com 71, e o Japão, com 54, vêm a seguir.
– No total, 65% dos brasileiros expatriados vão para a Europa.
– São 16 os países que reúnem mais de 20 brasileiros em seus campeonatos. Entre essas nações com número significativo de jogadores do Brasil estão diversos países europeus e alguns destinos pouco tradicionais no esporte, como Indonésia, Tailândia e Hong Kong.
* ZH Esportes