Quando uma pessoa morre, nossa tendência natural é reduzir os defeitos e ampliar as virtudes do morto. É um pouco o adágio “descanse em paz”. Tudo bem, aquele sujeito era chato e inconveniente, mas ele nem está mais aqui para se defender de ser chamado de chato e inconveniente.
O sofrimento de quem fica comove. Daí para as lembranças seletivas, deletando as chatices, é o tempo de uma lágrima. Mas isso se dá conosco, os comuns. Quando morre um gênio, ainda mais um gênio que só “incomodava” assim, entre aspas, pelo lado positivo, colocando o dedo nas feridas do futebol para purgá-las até a cura, como Johan Cruyff em sua cruzada incansável contra a retranca, existe também a construção da lenda.
Até o Marca, jornal de Madri alinhado com os merengues e inimigo fundamentalista do Barcelona na imprensa espanhola, se rendeu a Cruyff. Impossível não louvá-lo, mesmo que o holandês, como técnico no Camp Nou, tenha introjetado na Catalunha o DNA da Laranja Mecânica que ele comandou como jogador na Copa do Mundo de 1974.
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Dentre as histórias fantásticas sobre Cruyff, que passarão a ser contadas e desmentidas, e depois recontadas com um novo elemento descoberto que a tornará mais verossímel, mesmo que não se tenha certeza se este novo elemento é real ou não, está a das ondas da piscina.
Rinnus Michels e Cruyff, técnico e seu principal jogador, conversam à beira da piscina de um hotel na Holanda, à espera de um compromisso fora de casa do Ajax, embrião do carrossel depois fecundado na seleção nacional. Tratavam de amenidades, ainda que Michels discutisse regularmente futebol com o seu camisa 14. Cruyff é o maior craque, do ponto de vista tático, da história do futebol. Era capaz de enfileirar marcadores a drible ou encobrir o goleiro em curva, mas o que o distinguirá para sempre no panteão dos deuses é a inteligência, a criatividade, o xadrez da bola.
No meio do papo dos conterrâneos de Van Gogh, os galhos das árvores começaram a se mexer. E as folhas a farfalhar como se, de fato, sussurrassem algo. O vento produziu, na água da piscina, pequenas ondas concêntricas que iam e vinham, uma após a outra. Uma próxima da outra, preenchendo todos o espaços, da borda ao fundo, o que é muito importante. Cruyff fixou o olhar nos movimentos da água, desviando a atenção do que dizia Michels. Interrompeu-o, convidando-o a olharem juntos para a piscina. “E se...”, teria dito Michels após segundos de silêncio, acompanhado do famoso sorriso largo de Cruyff.
Nascia, graças a uma brisa passageira, a eternidade do futebol total do carrossel holandês, o novo mais antigo de que se tem notícia.
Verdade? Mentira? Um pouco de cada? Muito de cada? É o processo de construção da lenda.
Conversei com dois decanos da crônica esportiva: Ruy Carlos Ostermann e Roberto Avallone. O professor Ruy esteve – e isso não é lenda, é fato – em 13 Copas, entre Caldas Júnior e RBS. Queria saber dele, com sua incrível capacidade de se expressar, falando ou escrevendo, qual a lembrança crua do impacto de deparar com aquele admirável mundo novo, ainda não traduzido e interpretado. O Ruy estava lá, a metros de onde tudo se deu, no instante em que aconteceu. Mais perto, só entrando em campo e tabelando com Neeskens, Rensenbrink e Rep:
– Nos olhamos, nas tribunas, sem entender nada. Eram outros tempos, de informação menos espalhada. Sabíamos do Ajax, claro, mas não havia as imagens em todo o lugar a qualquer momento. Logo percebemos, naquela loucura total, que nunca mais seríamos os mesmos. Nós e o futebol.
Roberto Avallone era repórter do Jornal da Tarde, de São Paulo. Ele lembra da imagem feita pelo uruguaio Pedro Rocha, depois de a sua Celeste Olímpica mal tocar na bola na derrota por 2 a 0 para a Holanda. Um craque abençoado pela lucidez, não resta dúvida:
– Eles (os holandeses) surgiam de todos os lados. Era como se fosse uma invasão em cada palmo do campo. Fomos atropelados várias vezes por um mesmo trator.
Avallone esteve com Cruyff duas vezes em 1974. A primeira, antes da derrota brasileira para a Holanda por 2 a 0. Zagallo confessara, dias antes, que desconhecia o carrossel. E ainda provocara, dizendo que eram eles, os holandeses, que tinham de conhecer os tricampeões. Cruyff não polemizou.
No jogo, como se viu, os cabeludos loiros que corriam por todos os lados nos trataram como ilustres desconhecidos. Avallone entrevistou Cruyff em espanhol, um dos seis idiomas dominados pelo craque.
A segunda vez que Avallone e Cruyff estiveram juntos foi por acaso, no restaurante do estádio Olímpico de Munique, após a final. Eram outros tempos, sem pelotão de assessores. Jogadores não se julgavam celebridades, como agora. Depois de correr a tarde toda, Cruyff sentiu fome e foi saciá-la no local mais próximo. Avallone perguntou-lhe o que tinha acontecido.
– O melhor time perdeu – resumiu Cruyff, sem tons dramáticos.
Histórias, que agora assumem outra dimensão.
Morre o homem, nasce a lenda.
*ZHESPORTES