O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1957 foi o franco-argelino Albert Camus, autor de O Estrangeiro e A Peste, intelectual público que na época se manifestava duramente contra a guerra francesa para reprimir o movimento nacionalista de libertação da Argélia. Corta para quase 60 anos depois. O mais recente Nobel de Literatura, no fim do ano passado, foi concedido a Bob Dylan, que até escreveu um que outro livro, mas recebeu o prêmio pela contribuição apresentada pelo amplo repertório de suas composições musicais ao longo de meio século de carreira. Guarde este exemplo que voltaremos a ele.
Em 1958, uma Seleção Brasileira em que brilhavam nomes como Garrincha, Nilton Santos, Didi e um adolescente de apelido Pelé conquistaria a Copa do Mundo pela primeira vez na história do país. Pensar nisso hoje tem outra dimensão do que na época em que o Brasil estava longe de ser uma superpotência futebolística. Havia perdido fazia apenas oito anos uma traumática final em casa, contra o Uruguai. Um ano antes, em 1957, havia protagonizado um fiasco no Sul-Americano de Lima – até goleou alguns países de menor expressão, mas foi trucidado pelos reais donos do continente na época, Uruguai e Argentina. Logo, a conquista de uma Copa mudou tudo no cenário esportivo brasileiro. Como lembra Ruy Castro em Estrela Solitária: um Brasileiro Chamado Garrincha, um dos artífices dessa conquista, Garrincha, ganhava, na época, 18 mil cruzeiros mensais. Como conta Castro no livro, era uma remuneração razoável. O jogador mais bem pago do futebol brasileiro era Zizinho, que recebia 30 mil cruzeiros mensais do Bangu. Um senador da República ganhava 36 mil. Um advogado ou médico, 20 mil. Mas, como Castro continua lembrando, o próprio Botafogo achava que o passe do jogador valia 15 milhões de cruzeiros – uma grana que o atleta não veria se o clube decidisse vendê-lo. Descontado um bom número de variáveis, seria possível comparar esse valor com o poder de compra de R$ 4,5 mil de hoje.
Seis décadas depois, em julho deste ano, o atual maior craque do futebol brasileiro, e destaque da Seleção, Neymar, foi o sujeito da transferência mais cara da história do futebol mundial, com o francês Paris Saint-Germain aceitando bancar a multa de 222 milhões de euros (R$ 821,6 milhões) prevista em caso de rescisão unilateral. Se Garrincha na Seleção ganhava algo como R$ 54 mil somados 12 salários (e em sua época jogadores não recebiam 13º salário), Neymar receberá, apenas do clube francês, 40 milhões de euros (R$ 148 milhões) por ano, sem contar os consideráveis ganhos que um atleta de ponta pode recolher com contratos de publicidade.
Camus e Dylan, Garrincha e Neymar são símbolos interessantes para mapear uma transformação marcante dos últimos 60 anos, que afetou, de modos diversos, a cultura e o esporte: ambos foram agregados ao grande aluvião do entretenimento de massa e da sociedade do espetáculo. Na cultura, ao lado do surgimento de uma estrutura mais profissional e compartimentalizada (quando antes muitos artistas brasileiros, de escritores a dramaturgos, de poetas a compositores, alternavam a carreira artística com uma segunda profissão, normalmente no serviço público), isso representou uma erosão gradual das fronteiras entre o “gosto popular” e a “alta cultura”, ao ponto de um Nobel para Dylan lançar uma discussão que ainda não terminou sobre a propriedade de se considerar ou não a canção popular como uma das formas da literatura. Uma discussão que ecoa muitas outras surgidas no âmbito da arte a partir da voraz segunda metade do século 20, na música, nas artes, na literatura, muitas vezes provocando a erosão das fronteiras rígidas entre o “erudito” e o “vulgar”.
– Estamos em um momento em que temos que repensar os elementos que formam a cultura contemporânea, e que incluem matrizes da cultura popular e da cultura erudita. A moderna cultura de massa é um amálgama dessas várias matrizes, então hoje não é mais pertinente pensarmos em divisão entre cultura de massa e erudita, porque no interior dos produtos culturais essas categorias se misturam – avalia Manuela Barros, professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Já o caso de Neymar é um exemplar recente do esportista como um astro midiático que ganha proporcionalmente àquilo que traz para o jogo enquanto espetáculo – caráter que o esporte foi assumindo cada vez mais a partir do fim dos anos 1950, com a disseminação de uma das novidades tecnológicas transformadoras do século 20: a televisão.
Na prática, a televisão já existia havia duas décadas, mas como produto de massa só se consolidou internacionalmente no pós-II Guerra. No Brasil, na periferia do sistema, ela só estacionou em caráter comercial em 1950, com a fundação da primeira rede de TV do país, a TV Tupi. Até então, o grande meio de comunicação no país continuava sendo o rádio, e por toda a década de 1950 os dois meios disputaram a hegemonia do entretenimento do público. A rádio contava com as grandes estrelas do “star system” nacional, os cantores e cantoras que faziam a alegria do povo e eram campeões de vendas de discos, como Orlando Silva, Ataulfo Alves, Linda Batista, Luiz Gonzaga, Carmen Costa, Nelson Gonçalves, Paulo Tapajós, Carmélia Alves, Heleninha Costa, Ademilde Fonseca e Nora Ney, entre outros. A TV ainda não tinha programação suficiente para encher uma grade que abarcasse o dia inteiro (em 1957, as maiores emissoras brasileiras tinham uma média de 10 horas diárias de programação). Ao longo da década de 1960, essa correlação foi se alterando e a TV, escorada em fórmulas do próprio rádio, como novelas e programas musicais de auditório, foi se impondo, abocanhando audiência e trazendo para sua tela novas vertentes da arte brasileira, como as canções de novos compositores apresentados em festivais da canção transmitidos ao vivo com grande audiência.
A primeira grande virada ocorrida na música brasileira nesse período de 60 anos foi o surgimento de um dos gêneros populares mais ricos e reconhecido internacionalmente, a Bossa Nova, que tem como um de seus marcos fundadores o lançamento, em agosto de 1958, do primeiro compacto de João Gilberto, trazendo em um dos lados o clássico Chega de Saudade. Cantando baixinho, ao contrário de artistas anteriores de vozes fortes, quase operísticas, João Gilberto se tornaria, na década de 1960, o farol para uma das mais brilhantes gerações surgidas na música popular de qualquer país em qualquer época: os cantores e compositores que dariam à MPB uma forma reconhecida até hoje, como Nara Leão, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé, Gal Costa.
Na mesma leva surgiu Elis Regina, cuja trajetória acompanharia a gradual migração do rádio para a TV que marcou o período. Nascida em Porto Alegre em 1945, estreou como artista mirim aos 11 anos de idade, no Clube do Guri da Rádio Farroupilha, apresentado por Ari Rego. Em 1958, foi contratada pela Rádio Gaúcha e, em 1964, já com quatro discos gravados, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornaria uma das maiores cantoras do país – para muitos ela foi a maior. Em uma época em que a TV era responsável por apresentar ao público grandes festivais da canção, Elis encarnou, com sua entusiasmada interpretação de Arrastão, em 1965, no 1º Festival da Música Popular Brasileira, muito da inovação que os artistas nacionais estavam injetando no gênero. Ela atravessaria os anos 1960 e 1970 como uma intérprete antenada que, valendo-se da projeção de seu nome, pavimentou o caminho para diversos compositores iniciantes. Sua morte precoce, em 1982, aos 36 anos, não diminuiu sua importância em meio a uma geração que continua ativa e predominante no cenário cultural brasileiro até hoje.
Todas essas transformações culturais que atingiram o Brasil no período foram, em grande parte, resultado da urbanização acelerada do país. A década de 1960 começou como a última em que o número de brasileiros vivendo no campo ainda supera os números dos habitantes das cidades. De acordo com os número do IBGE, em 1960 por volta de 32 milhões de brasileiros viviam nas cidades, contra quase 39 milhões de residentes rurais. Dez anos depois, em 1970, a proporção havia mudado, e quase 53 milhões de pessoas viviam em áreas urbanas, em comparação com os 40 milhões registrados no campo. Era o Brasil se ajustando a um processo que havia se iniciado décadas antes em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos e na Europa.
O resultado dessa configuração foi duplo. De um lado, um maior tratamento de inquietações urbanas na arte, como a solidão dos habitantes da metrópole. Do outro, uma arte que cantava as tensões produzidas pelo crescimento urbano desenfreado em comparação com o cenário rural em declínio.
Como aponta Marcelo Ridenti em um ensaio sobre a cultura no Brasil incluído no livro Modernização, Ditadura e Democracia: 1964–2010, “o rápido processo de urbanização manteve a memória – frequentemente idealizada – da vida no campo, transmitida pelos próprios migrantes ou por meio de tradições passadas a seus filhos e netos, muitos dos quais constituintes das novas classes médias intelectualizadas, de onde brotariam os principais núcleos de produção artística a partir dos anos 1960”.
No Rio Grande do Sul, esse impulso já vinha se traduzindo na arte desde a primeira metade do século 20, em que nomes como Erico Verissimo e Cyro Martins haviam lançado olhares críticos ao personagem idealizado do gaúcho rural, em suas respectivas séries de romances O Tempo e o Vento e Trilogia do Gaúcho a Pé. O sucesso artístico desses dois modelos garantiu a sobrevivência ao longo de boa parte do século 20 do romance histórico como um gênero praticado por uma nova geração de autores, como Tabajara Ruas e Luiz Antonio de Assis Brasil. Mas a presença de um universo rural mais simples também se espalharia no imaginário local com a disseminação pelo país e pelo mundo, a partir dos anos 1960, dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), agremiações dedicadas a preservar elementos tradicionais do passado rio-grandense. O primeiro deles havia sido fundado em 1948, em Porto Alegre, o CTG 35, mas seria durante a década de 1960 que eles começariam a se espalhar pelo interior do Estado e, mais tarde, por outros países – em um movimento que acompanhava a gradual migração de grandes contingentes da população gaúcha para o centro-oeste brasileiro.
Ao mesmo tempo, a década de 1960 testemunhou a ascensão nacional do protótipo de um movimento rock no Brasil, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Vanderleia. Eram os protagonistas do chamado “Iê iê iê” (termo nascido do abrasileiramento do “yeah, yeah, yeah” que se ouvia no refrão de She Loves You), dos Beatles. De jaqueta de couro, óculos escuros, anéis graúdos, Roberto e sua turma se apresentavam sintonizados com a revolução comportamental no Exterior, na qual nomes como Beatles e Rolling Stones escandalizavam o ouvinte mainstream com seus cabelos mais compridos do que o habitual e guitarras enérgicas. Parte da juventude nacional abraçou o gênero, enquanto outra parte considerava a postura hedonista dos artistas da Jovem Guarda, que cantavam sobre romances e velocidade, alienada de um momento em que o golpe de 1964 já havia instaurado a Ditadura Militar. De fato, a importação do modelo musical realizada pela Jovem Guarda podia ser muitas vezes mais de forma do que de conteúdo, a ponto de o conjunto Os Incríveis, em 1967, fazer amplo sucesso com Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones, versão de um original italiano de Gianni Morandi na qual o personagem se via forçado a abreviar sua juventude por uma convocação ao Vietnã – uma situação com a qual os jovens brasileiros fãs de rock só poderiam se identificar com o uso da imaginação.
Era o sinal de um Brasil cada vez mais conectado com o mundo, ainda que com um certo atraso.
O movimento punk que havia surgido nos anos 1970 em Nova York e na Inglaterra desembarcou no Brasil apenas no início dos anos 1980, com uma geração que atualizou o espírito roqueiro para incluir questionamentos à estrutura social, raiva e uma angústia niilista com as mazelas recorrentes do país – Que País é Esse?, do Legião Urbana, hoje é lembrada como uma tradução completa dessa proposta, mas outros grupos do período também ecoaram essa estética, como a Plebe Rube (Até Quando Esperar), o Ira! (Pobre Paulista), os Inocentes (Pátria Amada) e mesmo o trio Paralamas do Sucesso, mais interessado em fundir o rock com ritmos caribenhos (em Alagados). No Rio Grande do Sul, embora Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós representassem o maior sucesso popular Brasil afora, a cena também abrangia o som de feição muito particular feito no período por bandas como DeFalla e Replicantes.
Um atraso que começou a ser mínimo com o surgimento da tecnologia digital. O Brasil caiu na rede em 1995, ano em que duas portarias e uma norma técnica publicadas pelo governo federal autorizaram a exploração comercial da internet, uma rede de computadores conectados formando uma teia virtual de informações. Na prática, a internet já estava no Brasil desde 1990, mas restrita a unidades de pesquisa e instituições de ensino. Dos 200 mil usuários brasileiros no fim daquele primeiro ano, pulou-se para um número de 100 milhões, 58% da população, em 2016. No processo, a tecnologia em rede mudou a forma como o espectador consumia cultura e entretenimento. De redes de fãs que podiam se conectar com mais eficiência em tempo real a uma infinidade de opções para encontrar produtos fora do mercado – ou mesmo dentro do mercado, já que o “baixar” filmes, músicas e livros tornou-se uma mania.
A transferência da internet para o telefone celular (outra novidade a chegar ao Brasil com atraso, em 1992, uma vez que já funcionava nos Estados Unidos desde os anos 1980) e a ascensão das redes sociais transformaram definitivamente o panorama. Desde o início, a internet foi o palco, portanto, de duas visões de mundo: a mentalidade empresarial que via grande potencial de lucro na novidade, e muitos usuários da rede que achavam que seu potencial deveria ser utilizado para democratizar o conhecimento – um anseio que ecoava a contracultura dos anos 1960 e até mesmo o desapego material pregado pelos hippies do mesmo período.
– Se a gente for voltar para as origens da internet, as pessoas tendem a enfatizar o seu surgimento como aplicação militar, na origem, ou para a troca de conhecimentos entre pesquisadores. Mas há uma terceira vertente dessa origem que é contracultural. Fred Turner, em seu livro Da Contracultura à Cibercultura, mostra a influência de caras como Timothy Leary e outros gurus da cultura hippie, sobre o pessoal de tecnologia. São coisas vendidas como grandes novidades, mas é algo reapropriado pelo pessoal da tecnologia – analisa Adriana Amaral, pesquisadora de cultura pop e professora da Unisinos.
No esporte, como já referido, a Seleção havia descoberto um campo no qual sua atuação geral ficava longe da mera irrelevância. País sem tradição da prática disseminada de esportes, parecia ter mais vocação para espectador do que para estrela – ou parecia, na formulação de Nelson Rodrigues em suas crônicas esportivas, que o país sofria de um incontornável “complexo de vira-lata”, sentimento de que não estava destinado para a grandeza nem que a merecia. Aí veio a vitória na Copa de 1958, na Suécia – a primeira copa transmitida pela televisão, embora apenas os locais tenham conseguido ver as partidas ao vivo, os demais precisaram se contentar com os compactos filmados que na época ainda não eram chamados, por razões óbvias, de videotape. Aliás, com aquela Seleção estava o primeiro gaúcho a ser sagrado campeão do mundo, o lateral-esquerdo nascido em Santa Maria Oreco – titular durante um bom período, às vésperas da copa tornou-se reserva de Nilton Santos e viu a conquista do banco.
Quatro anos depois, na Copa do Chile, em 1962, um time em grande parte formado da mesma base dos campeões de 1958 venceria o bicampeonato na sétima edição da Copa do Mundo. E oito anos depois o Brasil registraria um dos maiores feitos esportivos mundiais de sua história. Uma renovada seleção conquistou, em 1970, o tricampeonato mundial. Era o número de vitórias necessárias para assegurar a posse definitiva do primeiro troféu da copa, o da Jules Rimet, que vinha sendo entregue alternadamente ao campeão de cada edição desde 1930. O sucesso do esquadrão liderado por Pelé, Rivelino, Tostão e Carlos Alberto Torres (e com o lateral-esquerdo Everaldo, gaúcho que jogava pelo Grêmio, na titularidade) tornou o Brasil o “país do futebol” e inaugurou uma simbiose entre a autoestima nacional e o futebol.
O jejum de mundiais entre 1970 e 1994 serviu para até mesmo pôr em dúvida se o “jogo bonito” representado pelos brasileiros não teria ficado ultrapassado, principalmente depois da derrota traumática em 1982 para a Itália. Nesse período, para dar mais peso ao simbolismo, a Jules Rimet conquistada em 1970 foi roubada da sede da CBF e derretida. O tetra em 1994 e o penta em 2002 (com o gaúcho Luiz Felipe Scolari, o
Felipão, como treinador) impulsionaram uma nova onda de otimismo – a ponto de uma explicação popular para a perda da Copa de 1998, na França, na final contra os donos da casa, envolver uma teoria da conspiração em vez do reconhecimento de que, após Ronaldo Nazário sofrer uma convulsão, o grupo, abalado, não jogou bem.
O Brasil foi gradativamente vendo em seu sucesso no esporte uma esperança de sucesso como projeto de nação, como comenta o antropólogo Roberto DaMatta em seu ensaio Antropologia do Óbvio: “O futebol proporciona à sociedade brasileira a experiência da igualdade e da justiça social”. Entre outros motivos, porque o futebol premia talento mais empenho em um jogo no qual as regras são conhecidas e valem para todos. Essa simbiose deu origem ao que o sociólogo Ronaldo Helal, coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, chama de “ciclotimia brasileira”:
– O brasileiro oscila entre o ufanismo tolo e o pessimismo exacerbado. Quando a Seleção ganha, somos os melhores do mundo, quando perde, somos os piores.
Um sentimento que encontrou seu auge na preparação do Brasil para receber a Copa do Mundo, em 2014. Depois de meses de protestos contra os gastos exorbitantes e de discussões com a Fifa sobre a precariedade da preparação nacional para um evento daquela magnitude, 12 cidades brasileiras, incluindo Porto Alegre, no Beira-Rio reformado, foram sedes de partidas do evento. Se no início pensava-se que a boa atuação do Brasil de Felipão (reconduzido ao cargo de treinador) seria a única maneira de sair incólume do fiasco da organização, o evento se encerrou com a imprensa internacional elogiando de forma unânime a recepção calorosa aos visitantes (uma foto tirada pelo fotógrafo de Zero Hora Félix Zucco mostrando a Borges de Medeiros, em Porto Alegre, transformada em um rio laranja de torcedores holandeses, correu mundo), o fiasco veio mesmo em campo, com uma seleção pouco convincente humilhada por 7 a 1 no confronto com a bem organizada Alemanha, uma das sensações do torneio. Um trauma que superou em muito o sempre lembrado Maracanazo, a derrota para a seleção uruguaia em 1950. Copa em casa parece não ser mesmo o lance do Brasil.
Outro efeito dessa correlação entre futebol e sociedade, em um país sem um programa organizado de incentivo aos esportes em geral, foi que a conquista do afeto popular se tornou mais árdua para os demais esportes, e quase sempre atrelada aos bons resultados obtidos por um fenômeno esparso. Os anos 1970 viram a ascensão do gaúcho Henrique Meking, o Mequinho, que se tornou fenômeno popular ao alcançar a terceira posição do ranking internacional do xadrez, em 1977.
Em 1972, Emerson Fittipaldi se tornou o primeiro campeão mundial da Fórmula 1, galvanizando o interesse do público pela mais importante categoria da velocidade – um interesse que persistiu e se renovou ao longo de duas décadas devido ao surgimento de outros grandes pilotos brasileiros campeões, como Nelson Piquet e Ayrton Senna – elevado a uma espécie de panteão popular após sua morte prematura no Grande Prêmio de Imola, em 1994. Os anos 1990 apresentaram ao Brasil a possibilidade de ser grande no tênis, com Guga Kuerten. Os anos 1980 viram a ascensão do vôlei na esteira da vitoriosa “geração de prata” em que brilhavam Bernard, Renan e Bernardinho, e que continuou com a evolução do esporte no país nas décadas seguintes. O vôlei conquistou desde então uma hegemonia no esporte até maior do que a do futebol: medalha de ouro nas Olimpíadas de 1992, repetiu o feito em 2004 e ganhou a maioria dos torneios que disputou. Ainda assim, é bem menos badalado que a “seleção canarinho”. Nenhum desses episódios isolados, ou mesmo uma Olimpíada realizada no Rio, serviu para que algum desses esportes sequer arranhasse a predominância do futebol como o grande entretenimento esportivo
de massa no Brasil.
O Rio Grande do Sul, por sua vez, passou os últimos 60 anos vendo a rivalidade Gre-Nal se acentuar, com ambos os times passando por boas e más fases quase nunca coincidentes – o que levou o jornalismo esportivo a cunhar o termo “gangorra”. Claro que aí também não havia novidade, a rivalidade era acentuada desde o início. O Inter já havia apresentado ao Estado o grande time do Rolo Compressor, nos anos 1930 e 1940. O início dos anos 1960 veria a hegemonia mudar de lado, com o Grêmio sagrando-se hexacampeão gaúcho em 1967. Nos anos 1970, um Inter liderado pelo grande Falcão levaria o futebol gaúcho ao destaque nacional, conquistando três campeonatos nacionais.
Nos anos 1980, foi a vez de o Grêmio, em que a estrela era Renato Portaluppi, levar seu nome para o mundo, com a conquista da Libertadores e do Mundial em 1983. O Inter só conquistaria algo semelhante nos anos 2000, sob a batuta do ídolo Fernandão. Um período em que as rivalidades locais já precisavam lidar com as imposições de um futebol globalizado: times reservas para a maratona de jogos em mais de uma competição, receita vinda de transmissões de TV, negociações tensas entre times e atletas cada vez mais cobiçados pelo dinheiro da Europa – a maior revelação do Grêmio no fim do século 20, Ronaldinho Gaúcho, se tornaria um nome antagonizado pela torcida após uma transferência para o Paris Saint-Germain em 2001, uma decisão tão traumática como a do citado Neymar há pouco mais de um mês.
Para o que virá nos próximos 60 anos, há uma imensa pulverização de alternativas. Em um mundo em que produtores de cultura nunca tiveram tanta facilidade para se conectar e colaborar, a ousadia e a experimentação nunca tiveram tanto espaço. Ao mesmo tempo, com tantas alternativas em tantos lugares, muito se perde no ruído geral. O que se ganha em amplitude, perde-se em profundidade. Ao mesmo tempo, instituições como a indústria do entretenimento esportivo passaram por choques como as recentes investigações de corrupção na Fifa, a maior entidade do futebol mundial. Muitos torcedores lamentam a falta de uma identidade maior entre clube e atleta, mas o futebol como espetáculo foi se tornando mais padronizado, com estádios mais confortáveis e clubes que tentam fazer de sua trajetória dividendo. É show business, baby, sociedade de consumo em sua forma mais pura. Ao mesmo tempo, se cultura e esportes são espetáculos de consumo, as escolhas de um consumidor mais consciente podem vir a transformar esse cenário. Quem sabe?
O vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1957 foi o franco-argelino Albert Camus, autor de O Estrangeiro e A Peste, intelectual público que na época se manifestava duramente contra a guerra francesa para reprimir o movimento nacionalista de libertação da Argélia. Corta para quase 60 anos depois. O mais recente Nobel de Literatura, no fim do ano passado, foi concedido a Bob Dylan, que até escreveu um que outro livro, mas recebeu o prêmio pela contribuição apresentada pelo amplo repertório de suas composições musicais ao longo de meio século de carreira. Guarde este exemplo que voltaremos a ele.
Em 1958, uma Seleção Brasileira em que brilhavam nomes como Garrincha, Nilton Santos, Didi e um adolescente de apelido Pelé conquistaria a Copa do Mundo pela primeira vez na história do país. Pensar nisso hoje tem outra dimensão do que na época em que o Brasil estava longe de ser uma superpotência futebolística. Havia perdido fazia apenas oito anos uma traumática final em casa, contra o Uruguai. Um ano antes, em 1957, havia protagonizado um fiasco no Sul-Americano de Lima – até goleou alguns países de menor expressão, mas foi trucidado pelos reais donos do continente na época, Uruguai e Argentina. Logo, a conquista de uma Copa mudou tudo no cenário esportivo brasileiro. Como lembra Ruy Castro em Estrela Solitária: um Brasileiro Chamado Garrincha, um dos artífices dessa conquista, Garrincha, ganhava, na época, 18 mil cruzeiros mensais. Como conta Castro no livro, era uma remuneração razoável. O jogador mais bem pago do futebol brasileiro era Zizinho, que recebia 30 mil cruzeiros mensais do Bangu. Um senador da República ganhava 36 mil. Um advogado ou médico, 20 mil. Mas, como Castro continua lembrando, o próprio Botafogo achava que o passe do jogador valia 15 milhões de cruzeiros – uma grana que o atleta não veria se o clube decidisse vendê-lo. Descontado um bom número de variáveis, seria possível comparar esse valor com o poder de compra de R$ 4,5 mil de hoje.
Seis décadas depois, em julho deste ano, o atual maior craque do futebol brasileiro, e destaque da Seleção, Neymar, foi o sujeito da transferência mais cara da história do futebol mundial, com o francês Paris Saint-Germain aceitando bancar a multa de 222 milhões de euros (R$ 821,6 milhões) prevista em caso de rescisão unilateral. Se Garrincha na Seleção ganhava algo como R$ 54 mil somados 12 salários (e em sua época jogadores não recebiam 13º salário), Neymar receberá, apenas do clube francês, 40 milhões de euros (R$ 148 milhões) por ano, sem contar os consideráveis ganhos que um atleta de ponta pode recolher com contratos de publicidade.
Camus e Dylan, Garrincha e Neymar são símbolos interessantes para mapear uma transformação marcante dos últimos 60 anos, que afetou, de modos diversos, a cultura e o esporte: ambos foram agregados ao grande aluvião do entretenimento de massa e da sociedade do espetáculo. Na cultura, ao lado do surgimento de uma estrutura mais profissional e compartimentalizada (quando antes muitos artistas brasileiros, de escritores a dramaturgos, de poetas a compositores, alternavam a carreira artística com uma segunda profissão, normalmente no serviço público), isso representou uma erosão gradual das fronteiras entre o “gosto popular” e a “alta cultura”, ao ponto de um Nobel para Dylan lançar uma discussão que ainda não terminou sobre a propriedade de se considerar ou não a canção popular como uma das formas da literatura. Uma discussão que ecoa muitas outras surgidas no âmbito da arte a partir da voraz segunda metade do século 20, na música, nas artes, na literatura, muitas vezes provocando a erosão das fronteiras rígidas entre o “erudito” e o “vulgar”.
– A moderna cultura de massa é um amálgama dessas várias matrizes, então hoje não é mais pertinente pensarmos em divisão entre cultura de massa e erudita, porque no interior dos produtos culturais essas categorias se misturam – avalia Manuela Barros, professora do programa de pós-graduação em sociologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
Já o caso de Neymar é um exemplar recente do esportista como um astro midiático que ganha proporcionalmente àquilo que traz para o jogo enquanto espetáculo – caráter que o esporte foi assumindo cada vez mais a partir do fim dos anos 1950, com a disseminação de uma das novidades tecnológicas transformadoras do século 20: a televisão.
Na prática, a televisão já existia havia duas décadas, mas como produto de massa só se consolidou internacionalmente no pós-II Guerra. No Brasil, na periferia do sistema, ela só estacionou em caráter comercial em 1950, com a fundação da primeira rede de TV do país, a TV Tupi. Até então, o grande meio de comunicação no país continuava sendo o rádio, e por toda a década de 1950 os dois meios disputaram a hegemonia do entretenimento do público. A rádio contava com as grandes estrelas do “star system” nacional, os cantores e cantoras que faziam a alegria do povo e eram campeões de vendas de discos, como Orlando Silva, Ataulfo Alves, Linda Batista, Luiz Gonzaga, Carmen Costa, Nelson Gonçalves, Paulo Tapajós, Carmélia Alves, Heleninha Costa, Ademilde Fonseca e Nora Ney, entre outros. A TV ainda não tinha programação suficiente para encher uma grade que abarcasse o dia inteiro (em 1957, as maiores emissoras brasileiras tinham uma média de 10 horas diárias de programação). Ao longo da década de 1960, essa correlação foi se alterando e a TV, escorada em fórmulas do próprio rádio, como novelas e programas musicais de auditório, foi se impondo, abocanhando audiência e trazendo para sua tela novas vertentes da arte brasileira, como as canções de novos compositores apresentados em festivais da canção transmitidos ao vivo com grande audiência.
A primeira grande virada ocorrida na música brasileira nesse período de 60 anos foi o surgimento de um dos gêneros populares mais ricos e reconhecido internacionalmente, a Bossa Nova, que tem como um de seus marcos fundadores o lançamento, em agosto de 1958, do primeiro compacto de João Gilberto, trazendo em um dos lados o clássico Chega de Saudade. Cantando baixinho, ao contrário de artistas anteriores de vozes fortes, quase operísticas, João Gilberto se tornaria, na década de 1960, o farol para uma das mais brilhantes gerações surgidas na música popular de qualquer país em qualquer época: os cantores e compositores que dariam à MPB uma forma reconhecida até hoje, como Nara Leão, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Tom Zé, Gal Costa.
Na mesma leva surgiu Elis Regina, cuja trajetória acompanharia a gradual migração do rádio para a TV que marcou o período. Nascida em Porto Alegre em 1945, estreou como artista mirim aos 11 anos de idade, no Clube do Guri da Rádio Farroupilha, apresentado por Ari Rego. Em 1958, foi contratada pela Rádio Gaúcha e, em 1964, já com quatro discos gravados, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se tornaria uma das maiores cantoras do país – para muitos ela foi a maior. Em uma época em que a TV era responsável por apresentar ao público grandes festivais da canção, Elis encarnou, com sua entusiasmada interpretação de Arrastão, em 1965, no 1º Festival da Música Popular Brasileira, muito da inovação que os artistas nacionais estavam injetando no gênero. Ela atravessaria os anos 1960 e 1970 como uma intérprete antenada que, valendo-se da projeção de seu nome, pavimentou o caminho para diversos compositores iniciantes. Sua morte precoce, em 1982, aos 36 anos, não diminuiu sua importância em meio a uma geração que continua ativa e predominante no cenário cultural brasileiro até hoje.
Todas essas transformações culturais que atingiram o Brasil no período foram, em grande parte, resultado da urbanização acelerada do país. A década de 1960 começou como a última em que o número de brasileiros vivendo no campo ainda supera os números dos habitantes das cidades. De acordo com os número do IBGE, em 1960 por volta de 32 milhões de brasileiros viviam nas cidades, contra quase 39 milhões de residentes rurais. Dez anos depois, em 1970, a proporção havia mudado, e quase 53 milhões de pessoas viviam em áreas urbanas, em comparação com os 40 milhões registrados no campo. Era o Brasil se ajustando a um processo que havia se iniciado décadas antes em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos e na Europa.
O resultado dessa configuração foi duplo. De um lado, um maior tratamento de inquietações urbanas na arte, como a solidão dos habitantes da metrópole. Do outro, uma arte que cantava as tensões produzidas pelo crescimento urbano desenfreado em comparação com o cenário rural em declínio.
Como aponta Marcelo Ridenti em um ensaio sobre a cultura no Brasil incluído no livro Modernização, Ditadura e Democracia: 1964–2010, “o rápido processo de urbanização manteve a memória – frequentemente idealizada – da vida no campo, transmitida pelos próprios migrantes ou por meio de tradições passadas a seus filhos e netos, muitos dos quais constituintes das novas classes médias intelectualizadas, de onde brotariam os principais núcleos de produção artística a partir dos anos 1960”.
No Rio Grande do Sul, esse impulso já vinha se traduzindo na arte desde a primeira metade do século 20, em que nomes como Erico Verissimo e Cyro Martins haviam lançado olhares críticos ao personagem idealizado do gaúcho rural, em suas respectivas séries de romances O Tempo e o Vento e Trilogia do Gaúcho a Pé. O sucesso artístico desses dois modelos garantiu a sobrevivência ao longo de boa parte do século 20 do romance histórico como um gênero praticado por uma nova geração de autores, como Tabajara Ruas e Luiz Antonio de Assis Brasil. Mas a presença de um universo rural mais simples também se espalharia no imaginário local com a disseminação pelo país e pelo mundo, a partir dos anos 1960, dos Centros de Tradições Gaúchas (CTG), agremiações dedicadas a preservar elementos tradicionais do passado rio-grandense. O primeiro deles havia sido fundado em 1948, em Porto Alegre, o CTG 35, mas seria durante a década de 1960 que eles começariam a se espalhar pelo interior do Estado e, mais tarde, por outros países – em um movimento que acompanhava a gradual migração de grandes contingentes da população gaúcha para o centro-oeste brasileiro.
Ao mesmo tempo, a década de 1960 testemunhou a ascensão nacional do protótipo de um movimento rock no Brasil, a Jovem Guarda de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Vanderleia. Eram os protagonistas do chamado “Iê iê iê” (termo nascido do abrasileiramento do “yeah, yeah, yeah” que se ouvia no refrão de She Loves You), dos Beatles. De jaqueta de couro, óculos escuros, anéis graúdos, Roberto e sua turma se apresentavam sintonizados com a revolução comportamental no Exterior, na qual nomes como Beatles e Rolling Stones escandalizavam o ouvinte mainstream com seus cabelos mais compridos do que o habitual e guitarras enérgicas. Parte da juventude nacional abraçou o gênero, enquanto outra parte considerava a postura hedonista dos artistas da Jovem Guarda, que cantavam sobre romances e velocidade, alienada de um momento em que o golpe de 1964 já havia instaurado a Ditadura Militar. De fato, a importação do modelo musical realizada pela Jovem Guarda podia ser muitas vezes mais de forma do que de conteúdo, a ponto de o conjunto Os Incríveis, em 1967, fazer amplo sucesso com Era um Garoto que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones, versão de um original italiano de Gianni Morandi na qual o personagem se via forçado a abreviar sua juventude por uma convocação ao Vietnã – uma situação com a qual os jovens brasileiros fãs de rock só poderiam se identificar com o uso da imaginação.
Era o sinal de um Brasil cada vez mais conectado com o mundo, ainda que com um certo atraso.
O movimento punk que havia surgido nos anos 1970 em Nova York e na Inglaterra desembarcou no Brasil apenas no início dos anos 1980, com uma geração que atualizou o espírito roqueiro para incluir questionamentos à estrutura social, raiva e uma angústia niilista com as mazelas recorrentes do país – Que País é Esse?, do Legião Urbana, hoje é lembrada como uma tradução completa dessa proposta, mas outros grupos do período também ecoaram essa estética, como a Plebe Rube (Até Quando Esperar), o Ira! (Pobre Paulista), os Inocentes (Pátria Amada) e mesmo o trio Paralamas do Sucesso, mais interessado em fundir o rock com ritmos caribenhos (em Alagados). No Rio Grande do Sul, embora Engenheiros do Hawaii e Nenhum de Nós representassem o maior sucesso popular Brasil afora, a cena também abrangia o som de feição muito particular feito no período por bandas como DeFalla e Replicantes.
Um atraso que começou a ser mínimo com o surgimento da tecnologia digital. O Brasil caiu na rede em 1995, ano em que duas portarias e uma norma técnica publicadas pelo governo federal autorizaram a exploração comercial da internet, uma rede de computadores conectados formando uma teia virtual de informações. Na prática, a internet já estava no Brasil desde 1990, mas restrita a unidades de pesquisa e instituições de ensino. Dos 200 mil usuários brasileiros no fim daquele primeiro ano, pulou-se para um número de 100 milhões, 58% da população, em 2016. No processo, a tecnologia em rede mudou a forma como o espectador consumia cultura e entretenimento. De redes de fãs que podiam se conectar com mais eficiência em tempo real a uma infinidade de opções para encontrar produtos fora do mercado – ou mesmo dentro do mercado, já que o “baixar” filmes, músicas e livros tornou-se uma mania.
A transferência da internet para o telefone celular (outra novidade a chegar ao Brasil com atraso, em 1992, uma vez que já funcionava nos Estados Unidos desde os anos 1980) e a ascensão das redes sociais transformaram definitivamente o panorama. Desde o início, a internet foi o palco, portanto, de duas visões de mundo: a mentalidade empresarial que via grande potencial de lucro na novidade, e muitos usuários da rede que achavam que seu potencial deveria ser utilizado para democratizar o conhecimento – um anseio que ecoava a contracultura dos anos 1960 e até mesmo o desapego material pregado pelos hippies do mesmo período.
– Fred Turner, em seu livro Da Contracultura à Cibercultura, mostra a influência de caras como Timothy Leary e outros gurus da cultura hippie, sobre o pessoal de tecnologia. São coisas vendidas como grandes novidades, mas é algo reapropriado pelo pessoal da tecnologia – analisa Adriana Amaral, pesquisadora de cultura pop e professora da Unisinos.
No esporte, como já referido, a Seleção havia descoberto um campo no qual sua atuação geral ficava longe da mera irrelevância. País sem tradição da prática disseminada de esportes, parecia ter mais vocação para espectador do que para estrela – ou parecia, na formulação de Nelson Rodrigues em suas crônicas esportivas, que o país sofria de um incontornável “complexo de vira-lata”, sentimento de que não estava destinado para a grandeza nem que a merecia. Aí veio a vitória na Copa de 1958, na Suécia – a primeira copa transmitida pela televisão, embora apenas os locais tenham conseguido ver as partidas ao vivo, os demais precisaram se contentar com os compactos filmados que na época ainda não eram chamados, por razões óbvias, de videotape. Aliás, com aquela Seleção estava o primeiro gaúcho a ser sagrado campeão do mundo, o lateral-esquerdo nascido em Santa Maria Oreco – titular durante um bom período, às vésperas da copa tornou-se reserva de Nilton Santos e viu a conquista do banco.
Quatro anos depois, na Copa do Chile, em 1962, um time em grande parte formado da mesma base dos campeões de 1958 venceria o bicampeonato na sétima edição da Copa do Mundo. E oito anos depois o Brasil registraria um dos maiores feitos esportivos mundiais de sua história. Uma renovada seleção conquistou, em 1970, o tricampeonato mundial. Era o número de vitórias necessárias para assegurar a posse definitiva do primeiro troféu da copa, o da Jules Rimet, que vinha sendo entregue alternadamente ao campeão de cada edição desde 1930. O sucesso do esquadrão liderado por Pelé, Rivelino, Tostão e Carlos Alberto Torres (e com o lateral-esquerdo Everaldo, gaúcho que jogava pelo Grêmio, na titularidade) tornou o Brasil o “país do futebol” e inaugurou uma simbiose entre a autoestima nacional e o futebol.
O jejum de mundiais entre 1970 e 1994 serviu para até mesmo pôr em dúvida se o “jogo bonito” representado pelos brasileiros não teria ficado ultrapassado, principalmente depois da derrota traumática em 1982 para a Itália. Nesse período, para dar mais peso ao simbolismo, a Jules Rimet conquistada em 1970 foi roubada da sede da CBF e derretida. O tetra em 1994 e o penta em 2002 (com o gaúcho Luiz Felipe Scolari, o
Felipão, como treinador) impulsionaram uma nova onda de otimismo – a ponto de uma explicação popular para a perda da Copa de 1998, na França, na final contra os donos da casa, envolver uma teoria da conspiração em vez do reconhecimento de que, após Ronaldo Nazário sofrer uma convulsão, o grupo, abalado, não jogou bem.
O Brasil foi gradativamente vendo em seu sucesso no esporte uma esperança de sucesso como projeto de nação, como comenta o antropólogo Roberto DaMatta em seu ensaio Antropologia do Óbvio: “O futebol proporciona à sociedade brasileira a experiência da igualdade e da justiça social”. Entre outros motivos, porque o futebol premia talento mais empenho em um jogo no qual as regras são conhecidas e valem para todos. Essa simbiose deu origem ao que o sociólogo Ronaldo Helal, coordenador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esportes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, chama de “ciclotimia brasileira”:
– O brasileiro oscila entre o ufanismo tolo e o pessimismo exacerbado. Quando a Seleção ganha, somos os melhores do mundo, quando perde, somos os piores.
Um sentimento que encontrou seu auge na preparação do Brasil para receber a Copa do Mundo, em 2014. Depois de meses de protestos contra os gastos exorbitantes e de discussões com a Fifa sobre a precariedade da preparação nacional para um evento daquela magnitude, 12 cidades brasileiras, incluindo Porto Alegre, no Beira-Rio reformado, foram sedes de partidas do evento. Se no início pensava-se que a boa atuação do Brasil de Felipão (reconduzido ao cargo de treinador) seria a única maneira de sair incólume do fiasco da organização, o evento se encerrou com a imprensa internacional elogiando de forma unânime a recepção calorosa aos visitantes (uma foto tirada pelo fotógrafo de Zero Hora Félix Zucco mostrando a Borges de Medeiros, em Porto Alegre, transformada em um rio laranja de torcedores holandeses, correu mundo), o fiasco veio mesmo em campo, com uma seleção pouco convincente humilhada por 7 a 1 no confronto com a bem organizada Alemanha, uma das sensações do torneio. Um trauma que superou em muito o sempre lembrado Maracanazo, a derrota para a seleção uruguaia em 1950. Copa em casa parece não ser mesmo o lance do Brasil.
Outro efeito dessa correlação entre futebol e sociedade, em um país sem um programa organizado de incentivo aos esportes em geral, foi que a conquista do afeto popular se tornou mais árdua para os demais esportes, e quase sempre atrelada aos bons resultados obtidos por um fenômeno esparso. Os anos 1970 viram a ascensão do gaúcho Henrique Meking, o Mequinho, que se tornou fenômeno popular ao alcançar a terceira posição do ranking internacional do xadrez, em 1977.
Em 1972, Emerson Fittipaldi se tornou o primeiro campeão mundial da Fórmula 1, galvanizando o interesse do público pela mais importante categoria da velocidade – um interesse que persistiu e se renovou ao longo de duas décadas devido ao surgimento de outros grandes pilotos brasileiros campeões, como Nelson Piquet e Ayrton Senna – elevado a uma espécie de panteão popular após sua morte prematura no Grande Prêmio de Imola, em 1994. Os anos 1990 apresentaram ao Brasil a possibilidade de ser grande no tênis, com Guga Kuerten. Os anos 1980 viram a ascensão do vôlei na esteira da vitoriosa “geração de prata” em que brilhavam Bernard, Renan e Bernardinho, e que continuou com a evolução do esporte no país nas décadas seguintes. O vôlei conquistou desde então uma hegemonia no esporte até maior do que a do futebol: medalha de ouro nas Olimpíadas de 1992, repetiu o feito em 2004 e ganhou a maioria dos torneios que disputou. Ainda assim, é bem menos badalado que a “seleção canarinho”. Nenhum desses episódios isolados, ou mesmo uma Olimpíada realizada no Rio, serviu para que algum desses esportes sequer arranhasse a predominância do futebol como o grande entretenimento esportivo
de massa no Brasil.
O Rio Grande do Sul, por sua vez, passou os últimos 60 anos vendo a rivalidade Gre-Nal se acentuar, com ambos os times passando por boas e más fases quase nunca coincidentes – o que levou o jornalismo esportivo a cunhar o termo “gangorra”. Claro que aí também não havia novidade, a rivalidade era acentuada desde o início. O Inter já havia apresentado ao Estado o grande time do Rolo Compressor, nos anos 1930 e 1940. O início dos anos 1960 veria a hegemonia mudar de lado, com o Grêmio sagrando-se hexacampeão gaúcho em 1967. Nos anos 1970, um Inter liderado pelo grande Falcão levaria o futebol gaúcho ao destaque nacional, conquistando três campeonatos nacionais.
Nos anos 1980, foi a vez de o Grêmio, em que a estrela era Renato Portaluppi, levar seu nome para o mundo, com a conquista da Libertadores e do Mundial em 1983. O Inter só conquistaria algo semelhante nos anos 2000, sob a batuta do ídolo Fernandão. Um período em que as rivalidades locais já precisavam lidar com as imposições de um futebol globalizado: times reservas para a maratona de jogos em mais de uma competição, receita vinda de transmissões de TV, negociações tensas entre times e atletas cada vez mais cobiçados pelo dinheiro da Europa – a maior revelação do Grêmio no fim do século 20, Ronaldinho Gaúcho, se tornaria um nome antagonizado pela torcida após uma transferência para o Paris Saint-Germain em 2001, uma decisão tão traumática como a do citado Neymar há pouco mais de um mês.
Para o que virá nos próximos 60 anos, há uma imensa pulverização de alternativas. Em um mundo em que produtores de cultura nunca tiveram tanta facilidade para se conectar e colaborar, a ousadia e a experimentação nunca tiveram tanto espaço. Ao mesmo tempo, com tantas alternativas em tantos lugares, muito se perde no ruído geral. O que se ganha em amplitude, perde-se em profundidade. Ao mesmo tempo, instituições como a indústria do entretenimento esportivo passaram por choques como as recentes investigações de corrupção na Fifa, a maior entidade do futebol mundial. Muitos torcedores lamentam a falta de uma identidade maior entre clube e atleta, mas o futebol como espetáculo foi se tornando mais padronizado, com estádios mais confortáveis e clubes que tentam fazer de sua trajetória dividendo. É show business, baby, sociedade de consumo em sua forma mais pura. Ao mesmo tempo, se cultura e esportes são espetáculos de consumo, as escolhas de um consumidor mais consciente podem vir a transformar esse cenário. Quem sabe?